No que vai de ano, escrevo em fevereiro, já foram mortas dez mulheres em Portugal vítimas de violência doméstica. Ainda esse número estava quente – em dois dias foram detidos cinco homens por violência doméstica –, saiu um estudo da FFMS baseado num inquérito feito em maio de 2018, através da Internet, a 2428 mulheres portuguesas entre os 18 e os 64 anos, que apurou que elas estão exaustas, têm salários baixos, ganham menos do que os homens, e que se o ritmo se mantiver, independentemente de com quanto contribuem para o orçamento familiar, esperarão cinco gerações para partilharem 50\50 com os homens o trabalho não pago que inclui as tarefas domésticas, cuidar dos filhos e dependentes; só metade se sente feliz e a maternidade também não é automaticamente sinónimo de realização. Conclui, por isso, que a situação das mulheres é atualmente insustentável e pode ter consequências desde a natalidade ao absentismo laboral, aos sistemas de proteção social, à educação dos filhos, índices de divórcio e qualidade de vida.
Imagino a situação das que não usam Internet. Um juiz da relação do Porto sofreu uma advertência do seu Conselho Superior depois de ter desculpado um crime de violência doméstica com o adultério da mulher vítima; o governo adia o estatuto dos cuidadores informais que são na maioria mulheres; os partidos políticos aprovaram uma lei de mínimos da paridade em 2019. Uma fotografia de uma saída à noite da bastonária da ordem dos enfermeiros é usada por um privilegiado do ancien régime, à falta de outra definição, para fazer comentários de teor sexual e sexista. Entretanto, os dados mais recentes do INE dão conta de que o maior número de precários é feminino e está em crescendo. Uma reportagem sobre tráfico de pessoas para exploração laboral é exibida num canal nacional e, a dada altura, diz que há uma correlação entre a exploração laboral e o sexo masculino e que a exploração sexual está mais ligada ao sexo feminino, mas neste caso as sinalizações estão muito aquém do que existe. Até na desgraça somos mais desgraçadas. Antes desta reportagem, tinha sido emitida uma outra sobre violações em Portugal e outra sobre tráfico e exploração sexual de mulheres pelo mundo fora. Todas excelentes, todas demolidoras. Para nós. A The Lancet publicou um estudo a revelar mais uma área em que as mulheres têm mais dificuldade em obter financiamento do que os homens. Desta vez é a investigação. Mais de metade dos jovens já sofreram de violência no namoro e a maioria acha natural, diz um estudo. Não sei se me escapou alguma, mas chega para ser óbvio que isto está fora de controlo. Está um ambiente de molde a inspirar a liderança feminina (espero que se entenda a ironia).
Mas nem tudo está perdido. Se o cinema for um espelho que pode mudar o mundo, como disse o ator mexicano Diego Luna, daqui a poucos dias são os Óscares e este ano os dois filmes com mais nomeações, incluindo as categorias mais importantes, são sobre mulheres, protagonizados por mulheres. Realizados por homens. Um artigo da HBR diz que a liderança é sobre pessoas e as pessoas mudam todos os dias. Os líderes saberão disso. Roma e A Favorita, que se a sociedade fosse uma escala seriam sobre mulheres nos seus extremos opostos: o primeiro sobre um papel que a sociedade sempre valorizou muito pouco, o das domésticas, patroas ou empregadas; o segundo, sobre um festival de representações e exercício de poder. Os dois são uma manifestação de força e do valor de qualquer papel que tenhamos na vida, à escala hollywoodesca. É grande.
O próximo artigo será sobre coisas positivas que também há muitas. E vê-las alimenta a autoestima sem a qual nem a própria vida se lidera. Tenho guardado este vídeo há algum tempo de uma grande profissional que a maioria dos portugueses conhecerá. Que também cozinha. A liderança pode assumir muitas formas.
Por: Sandra Clemente, jurista