O coração batia-lhe acelerado até nas mãos, tudo indicava que a sua intenção era saltar do peito para o mundo. Ela queria acordar, mas o calor tomava conta do corpo impedindo-a de abrir as pálpebras. Esgravatava dentro de si a força necessária para destapar os membros pesados caídos sobre a cama.
Procurava naquele novelo de confusão do sono a ponta do fio que lhe indicaria o regresso ao despertar e assim chegar àquele copo de água por beber à janela. Maldito cansaço. Malditas preocupações. Eram tantos os assuntos pendentes, os pagamentos por executar – já vais com mais de duas semanas de atraso – prazos impossíveis, emails a caírem como corpos exaustos que tropeçam para cima uns dos outros.
A cabeça dizia-lhe: é stress, há-que descansar. É preciso livrar a cabeça desse ruído que se instalou no meio da noite escura e silenciosa. Falava de si para si, mas nada sossegava a besta que despertara de um instante para o outro. Em menos de um segundo, sem se fazer anunciar, pôs-se o coração a cavalgar desenfreado e nada que pudesse trazer à consciência tinha mão naquilo.
Das obrigações por cumprir, concentra-se em passar a atenção para coisas que ainda gostaria de fazer, como se a vida ainda prometesse mais umas quantas ‘primeiras-vezes’. E ao invés de sonhar cor-de-rosa, surgem em modo pop-ups os arrependimentos, perdas, saudades e culpa. Já não vais dormir hoje. Desiste e abre os olhos por amor a Deus. Saiam do meu jardim!
Enche o peito, curva as costas e aperta o corpo de lado. Pareço-te pequena, mas estou sempre a crescer, poderia ser um polvo que cresce em todas as direções, e que com a ponta dos tentáculos avia assuntos e piparota obstáculos. Pareço-te pequena, mas não há nada que não esteja ao meu alcance. Posso tudo. Sou uma mulher. Sou poderosa. Sou mãe-filha-amante-amiga-tia-inspiração. Ah, pois é, sou enorme, estou em todo o lado. E em lado nenhum.
Esse lado nenhum faz com que abra, finalmente, os dois olhos e fixe um ponto no escuro. Atira a coberta para trás e senta-se com os pés a balouçar. Estica os pés e procura com a ponta das unhas pintadas de vermelho o tapete de lã, mas não chegam lá. É de facto pequena. Levanta-se de um salto, e sai do quarto sem saber para quê.
Sabe que quer sair do quarto, mas não sabe o que poderá fazer para resolver aquela chinfrineira que tomou de assalto a sua pobre e esforçada cabeça. Com a barriga encostada à bancada de mármore fria, enche o copo de plástico da filha com água fresca. Repara na diferença de temperaturas entre o copo e a pedra, e apercebe-se de que está viva.
Bebia de vez em quando um copito – ou dois ou três – para amolecer o corpo ao final do dia, ajudava a desligar do que o dia não tinha deixado terminar. Eram cada vez mais curtos, os dias. E as noites mais agitadas, ineficazes, cansativas.
Faltava-lhe qualquer coisa. Também essa preocupação lhe roubava atenção daquilo que era realmente importante. Era preciso fazer qualquer coisa, mas de onde viria o fumo?
Fazia as chamadas diárias antes do jantar, e a mãe repetia-lhe religiosamente: fazes uma dieta equilibrada? Não te esqueças de beber água. Andarás a abusar do açúcar ou do café? Já sabes que precisas dormir nunca menos de oito horas, senão deprimes. E quando vejo os amigos – perguntava-se acenando pesarosamente a cabeça, a boca apertada. Acena a cabeça pesada e as pálpebras imitam o gesto, enquanto a chinfrineira se organiza dentro de si e grita: estás a falhar!
Falam, falam, falam, para quê se ela não ouve além da martelada desses malditos assuntos pendentes. Falam o tempo todo, usam as palavras gratuitamente, acusam, insinuam, humilham, pedem, exigem, chamam, interrompem, repetem e repetem as mesmas coisas que não querem dizer nada e só acrescentam ruído e lixo. E o silêncio? Para que serve? Oh não, não falemos de silêncio, isso é espiritualismo feminino, quem quer ouvir falar de silêncio?
Toda a gente sabe que o silêncio revela ignorância, revela incapacidade, revela fraqueza de espírito, toda a gente sabe. O silêncio é uma espécie de doença crónica que ataca os que não aprenderam a usar língua materna, o silêncio é para os pobres, o silêncio é para as minorias, para os oprimidos. O poder está na mão de quem sabe falar, de quem sabe articular ideias com palavras como “inovação”, “iniciativa” e “novo”, e outras palavras da família que prometem um início de qualquer coisa grandiosa, notável.
Sim, o seu poder pode contar connosco, vamos juntar as palavras certas que irão transformar a sua base de dados em resultados, em números, em mais poder. Mas ela já não podia mais com as palavras. Os dedos das mãos saltitavam entre o teclado do portátil e o ecrã do smartphone, deslizavam de baixo para cima, passavam-se quinze minutos e caía mais um email. Nem as quatro horas da madrugada travavam esses malditos emails.
Caro ……. Os olhos vidrados no corpo do email. Respondo amanhã. Desliza os dedos de baixo para cima, repetidamente, à procura de se livrar das palavras. Pode ser que as imagens tenham esse poder anestesiante e fazer esquecer. O poder das imagens marca e faz esquecer? A tristeza vai-se apoderando dela à medida que o batimento do coração sossega, afundando-se num profundo vazio vertical. Recosta-se no sofá, deixa cair a mão, abre os dedos e solta o telemóvel.
Imagens para quê, se posso ter o silêncio. Sem esquecer que há diferentes tipos de silêncio, minha menina, e o silêncio desejado é mais difícil de se deixar apanhar. Escolher o silêncio e chegar até ele, não é para todos. O silêncio escolhido não se apresenta com valores democráticos, ele exige tempo e tempo é dinheiro, toda a gente sabe disso.
Um silêncio-escolhido é muito diferente do silêncio-ignorante ou do silêncio-envergonhado, do silêncio-oprimido. O silêncio-escolhido é tendencialmente branco e masculino, faz parte de uma estratégia que pertence unicamente às mãos que seguram um Royal Flush. Sim, malta, não vale a pena arrancar cabelos por causa disto, é como é. O seu silêncio-escolhido estava desesperado por nascer, e não havia meio de ver a luz. Vive com outros silêncios, uns mais incómodos que outros.
O silêncio-envergonhado é incómodo e pertence às mulheres, assediadas, abusadas ou violadas, todas elas, sem exceção, porque ainda antes de nascerem já partem do princípio de que fizeram alguma coisa mal, de que estão na origem do equívoco – ainda que não saibam como o geraram – e é possível que habitar a própria pele livremente, sem considerar a fraca natureza do homem ou coisa do género, seja de facto o pecado original. Peço que me perdoes, sei que não és como os outros, mas sem te dares conta, apadrinhas.
Este meu silêncio-envergonhado tem de morrer para dar lugar ao escolhido, e se me amas deves dar-me a mão e ajudar-me a chegar lá. Porque sem ti, pai, irei conseguir, mas será mais violento. Sim, pai, o silêncio-ignorante é daqueles que deveriam estar atentos no cuidar, mas andam distraídos nas coisas do fazer-se notar. Sim, sim, esse silêncio é tremendo e devastador, minha gente, porque se é verdade que perdemos oportunidades para estarmos calados, também perdemos oportunidades para falar e agir no momento, a quente ou a frio tanto faz.
Não adianta dizer: «ah não percebi, nunca vi esse documento», pois, mas o mal está feito e o teu silêncio valeu a desgraça de uma família. “Mas eu não sabia”, pois não, mas era o teu lugar saber. E nesse silêncio-oprimido instalou-se o mal, a desconfiança, e essa desgraçada só morrerá quando já ninguém souber o significado da palavra fronteira e a crosta for uma só, e de todos os animais.
À medida que o dia nasce e os raios de luz entram pela sala, lembra-se de que “Para se ser artista, é necessário existir num mundo de silêncio.”, disse-o Louise Bourgeois, artista plástica franco-americana. Esta frase parece-lhe apelativa. E perguntava-se a que mundo de silêncio se referiria ela? Imagina que nesse mundo de silêncio não será perseguida pelas exigências da vida pública, não haverá de prestar contas, a não ser àqueles a quem pertence e ama, e aí nesse mundo de silêncio poderá criar o sonho.
Ela sabe que há quem cumpra essa função de criar O Sonho, para os que vivem agrilhoados possam respirar, possam encontrar momentos de paz, momentos de respiração, momentos de silêncio. Só depois de silenciar o ruído que nos ensurdece poderemos começar a ouvir o nosso próprio ruído: o que quero com isto, isto serve para quê, o que esperam de mim afinal?
Já não sabe quem a valida, quem a reconhece, quem decide se pode ou deve continuar. Continuar só mais um bocadinho. Esticar os membros mais um bocadinho para que, ainda que tirado a ferros, possa acolher nos braços o prometido mundo-de-silêncio.
Este artigo foi publicado na edição nº 28 da revista Líder, sob o tema Silêncio. Subscreva a Revista Líder aqui.