Quando alguém se acostuma a violar regras, é provável que perca discernimento para compreender duas coisas: que está a violar regras e que, se for apanhado, pode ser punido. Quando uma quantidade crescente de pessoas ou entidades adota uma conduta pouco ética, ilegal ou perigosa, há riscos de que, com o decurso do tempo, essa conduta passe a ser considerada normal, tanto pelos perpetradores quanto pelos observadores. Os dois casos ilustram, de modo simples, a “normalização do desvio”: algo que é “desviante” passa a ser considerado “normal”. Em casos extremos, esta normalização pode conduzir à banalização da maldade – que as tragédias da Ucrânia e de Gaza bem representam. O fenómeno tem enormes implicações nas múltiplas dimensões da vida – social, política e empresarial.
Quando líderes propagadores de pós-verdades acabam eleitos ou são bem-sucedidos, há riscos sérios de que a malcriadez e a apologia de “factos alternativos” passem a ser consideradas normais e toleradas. Pode dar-se então início a uma espiral descendente e até decadente. O que tem ocorrido com o tema da segurança é ilustrativo. Embora sejamos, objetivamente, um país bastante seguro, as perceções de insegurança – diz-se – aumentaram. O que fazem alguns políticos? Em vez de adotarem uma postura pedagógica, e apresentarem sensatamente os factos, cavalgam as perceções, de modo populista e sem coragem. Se eu disser ao meu médico, convictamente, que sou hipertenso, o que deve o clínico fazer? Sustentar a minha convicção e medicar-me, ou cumprir o seu dever? Lamentavelmente, ao empolar a perceção de insegurança, podem criar-se, desnecessariamente, sentimentos de insegurança, desconfiança e perigo. Desses sentimentos podem resultar ações e reações que geram, objetivamente, insegurança. Eis, então, que o demagogo alardeia, com soberba, a putativa sabedoria dos seus avisos.
Também a vida empresarial está repleta de evidências do fenómeno. Alguém começa a pisar o risco ou a cometer uma pequena infração. Porque não ocorre qualquer sanção e a “esperteza” é mesmo premiada, o passo seguinte é mais comprido. Mais pessoas começam a praticar o ato, e quem não aceita praticá-lo é socialmente sancionado. Afinal, se “toda a gente”, inclusivamente as lideranças e outras organizações, praticam esse ato ou o incentivam, porque haveria alguém de subtrair-se à sua adoção?! Foi a progressiva normalização do desvio que, em grande medida, contribuiu para escândalos empresarias bem conhecidos – e para a crise financeira de 2008. Há um ponto a partir do qual o desvio se transforma em desastre.
A normalização do desviro pode ocorrer mesmo em organizações insuspeitas, acabando em tragédia. Em 28 de janeiro de 1986, o vaivém espacial Challenger explodiu 73 segundos após o lançamento. Perderam a vida sete tripulantes, e o programa espacial da NASA sofreu um sério revés. Mas a tragédia poderia ter sido evitada. Um engenheiro, Roger Boisjoly, chamou a atenção para que as baixas temperaturas no Cabo Canaveral no dia do lançamento poderiam fazer claudicar as O-Rings, anéis de vedação das juntas do propulsor. O aviso foi subestimado. Na base dessa subestimação esteve a normalização do desvio: muitos lançamentos haviam sido feitos durante anos, nas mesmas condições, e nada acontecera! Normalizado o desvio, ficou aberto o caminho para que, mais lançamento menos lançamento, a tragédia ocorresse.
A normalização do desvio deve ser prevenida e combatida. É fundamental que estejamos permanentemente cientes do fenómeno e vigilantes – e que, a cada momento, desenvolvamos espírito crítico e adotemos uma bússola ética perante o que está normalizado. O facto de alguém ser famoso, bem-sucedido ou apoiado pela multidão não certifica a bondade ou a moralidade das suas ações. Simetricamente, o facto de uma posição ser minoritária não é um atestado à invalidade dessa posição. Importa que criemos espaço para a polifonia de opiniões, na sociedade e nas empresas – em vez de transformarmos a discordância em sintoma de deslealdade e lançarmos ataques de caráter a quem de nós discorda. É crucial que concedamos mais espaço aos “advogados do diabo”, pois ajudam-nos a refletir sobre os limites e fragilidades das nossas certezas. Estes esforços requerem que esvaziemos os nossos egos insuflados, contrariemos o nosso narcisismo, e nos abramos ao diálogo. Estimulemos, pois, o espírito crítico nas escolas e na sociedade, e encorajemos a aprendizagem com as tragédias históricas resultantes da banalização da maldade.