Partilha não consentida de conteúdos íntimos, ameaças online, burla e assédio: a violência digital deixou de ser um risco distante para se tornar uma ameaça concreta que marca vidas. Inês Marinho, sobrevivente e fundadora da associação #NãoPartilhes, partilhou o peso pessoal desta realidade e lançou um alerta urgente: «A culpa não está na vítima. Mas no criminoso.»
No Portugal Digital Summit, realizado a 22 e 23 de outubro em Lisboa, o painel Violência Digital — Quando o Espaço Virtual se Torna Real reuniu especialistas, investigadores e ativistas para discutir o fenómeno crescente, que afeta não apenas pessoas, mas também a confiança coletiva nas relações digitais. David Dinis, diretor-adjunto do Expresso, foi o moderador da conversa.

O peso da experiência
Inês Marinho partilhou a sua própria experiência de ser alvo de violência digital. A sua presença nas redes sociais, inicialmente focada na defesa dos direitos das mulheres, tornou-a um alvo. Conteúdos íntimos foram partilhados sem o seu consentimento, e a luta para mitigar os danos foi árdua. Mas, em vez de se render, Inês transformou a dor em ação. Criou a associação #NãoPartilhes, que oferece apoio jurídico, emocional e psicológico às vítimas. Além disso, trabalha para sensibilizar a sociedade e pressionar por mudanças legais.
«Agora ajudamos, damos palestras, consciencializamos e mostramos os recursos que existem. Fazemos também apoio pré-jurídico, emocional e psicológico.»
A sua história é um reflexo de uma realidade que afeta muitas pessoas em Portugal. Em 2024, a Linha Internet Segura da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) registou 681 processos de atendimento e apoio relacionados com cibercrime e outras formas de violência online. Destas 681 vítimas, 57% eram mulheres, e a maioria tinha mais de 18 anos. Os crimes mais reportados incluíam burla, extorsão, acesso ilegítimo, devassa da vida privada e crimes sexuais contra crianças.
O desafio jurídico e técnico
A advogada Adriana Brás, principal associate na Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva & Associados, descreveu o outro lado do combate — o que acontece depois da denúncia. Na firma, integra uma equipa chamada defesa digital, criada para responder a pedidos cada vez mais regulares de apoio a vítimas e empresas atacadas.
«Diariamente temos um conjunto de pedidos de pessoas em situações de vulnerabilidade. Seja a nível particular ou em empresas. Os ataques informáticos exigem tomadas de decisão: ‘Pago ou não este tipo de resgate?’», explicou. A maior preocupação, sublinha, é a prova: a sua custódia, a validade, a fronteira jurídica. «Um dos obstáculos inerentes passa desde logo pela jurisdição», acrescentou.
A tecnologia avança depressa; o direito, nem sempre. E é nessa lentidão que muitas vítimas perdem a esperança.
A resposta das autoridades
Do lado da investigação, Alves da Cunha, coordenador da Unidade Nacional Contra Terrorismo da Polícia Judiciária, reconheceu que o fenómeno ultrapassou o território do crime individual: «As redes sociais trouxeram novas formas de movimento destes crimes. Junto dos mais jovens há muita apetência e influência sobre os mesmos.»
Entre os casos mais recentes, destacou as detenções por crimes de discriminação e incitamento ao ódio, incluindo um homem de 30 anos que atacava jornalistas online. «Os crimes têm representado um enorme desafio para a PJ», sublinhou. O combate depende, cada vez mais, da colaboração com plataformas tecnológicas e operadores, para recolha de provas e identificação de autores — um processo que ainda é, muitas vezes, lento e burocrático.
A urgência da ação coletiva
Há vozes que chegam em silêncio — do outro lado de uma linha telefónica, através de uma mensagem, de um pedido quase inaudível de ajuda. Carolina Soares, gestora da Linha Internet Segura e da Unidade de Cibercrime da APAV, chama-lhes ‘os primeiros socorros’. São as vítimas que procuram, muitas vezes pela primeira vez, um gesto humano depois da violência invisível que as atinge.
«Apoiamos vítimas de qualquer tipo de crime. Criámos a unidade que coordeno e, no fundo, o que fazemos é isto. Estamos integrados num consórcio com várias entidades, e a nós cabem duas grandes dimensões: o apoio à vítima e a hotline, o canal de denúncia de conteúdo ilegal» explicou durante o debate.
A maioria das denúncias, conta, envolve conteúdos sexuais de menores, mas também burlas, extorsões e ameaças de partilha de imagens íntimas. «Há de tudo. As vítimas são variadas e diferentes», acrescenta. Os idosos estão entre os mais vulneráveis, muitas vezes enganados por esquemas que exploram fragilidades financeiras e tecnológicas.
Na linha que coordena, a resposta é imediata: garantir segurança emocional e orientação legal nos primeiros minutos. «Somos uma primeira linha. Garantimos, na primeira chamada, os primeiros socorros», descreve.
«Há quem não sobreviva»
A urgência das primeiras chamadas faz ricochete na experiência de Inês Marinho. Também ela começou por pedir ajuda — e percebeu como o silêncio pesa. «Chamo-me sobrevivente precisamente porque há quem não sobreviva. O conteúdo depois de vazado na internet perdura. Nem todas as pessoas conseguem lidar com isso. Tive a sorte de contar com familiares e amigos que nunca me julgaram».
O seu testemunho completa o da técnica da APAV: de um lado, a estrutura institucional que ampara; do outro, a coragem civil que denuncia e transforma.
Assim, num mundo hiperconectado, a violência digital deixou de ser um risco distante para se afirmar como uma ameaça concreta e devastadora. A fronteira entre o que acontece no ecrã e o impacto na vida real já não existe. O painel evidenciou a necessidade urgente de uma ação coordenada entre governo, empresas, sociedade civil e cidadãos para combater a violência digital. Inês Marinho concluiu com um apelo à mudança: «Precisamos de educar, apoiar e responsabilizar». E o caminho é esse.


