Dizermo-nos Zaratustras sem sabermos quem foi Nietzsche, ou declararmos que existimos sem que isso decorra do facto de pensarmos, porque já não duvidamos nem metódica nem radicalmente, não quer dizer absolutamente nada sobre nós, mas sobre uma entidade que se deixou silenciosamente alienar. Hoje, dia 20, terceira quinta-feira do mês de novembro, é o dia da Filosofia.
Em 2002 a UNESCO instituiu o Dia Mundial da Filosofia, como resultado da necessidade da humanidade refletir sobre os acontecimentos atuais, fomentando-se o pensamento crítico, criativo e independente, contribuindo assim para a promoção da tolerância e da paz.
Se em 2002 as necessidades acima referidas foram consideradas importantes para ser assinada a Declaração de Paris ( ver em baixo), em 2025, com a polarização das sociedades, com a inteligência artificial a ganhar terreno, os conflitos bélicos a acontecerem pelo mundo, as alterações climáticas a mostrarem que não devemos brincar com a natureza, e, acima de tudo, com o flagelo da alienação em que vivemos dia após dia, reféns de entretenimento, de redes sociais, de algoritmos, do stresse de fazer tudo a todo o tempo e em todos os lugares, talvez seja este o momento de parar para pensar.
Nunca pensei que esta frase tivesse tanto sentido prático como nos dias de hoje, mas confesso que hoje não vejo muitas outras saídas: a Filosofia pode salvar-nos. Se na Europa nos começamos a apetrechar para uma eventual guerra contra a Rússia, ou se nos laboratórios procuramos investigar para vivermos mais anos e sermos cada vez mais jovens, se treinamos a inteligência artificial para ela vir a ser mais inteligente do que nós, talvez seja o momento de começarmos a investir em nós humanos e naquilo que nos ajudou a ficar no topo da cadeia alimentar, Pensar.
Investir no pensamento, treiná-lo e colocá-lo ao serviço do ser humano pode valer a pena. Porque estarmos no topo da cadeia alimentar e perdermos a capacidade que nos conduziu a essa posição seria paradoxal, ou até hilariante, de repente já não é um bisonte ou um animal de grande porte que nos atropela, mas o nosso cérebro que se reforma antecipadamente, deixando-nos a sós com o nosso corpo. Imaginem o que seremos eternamente jovens, mas sem uma pinga de sentido critico, sem uma pitada de humor, sem compreendermos o que se está a passar à nossa volta, obedecendo sem consciência de o estarmos a fazer, sermos comandados sem encontrarmos o comandante.
Dizermo-nos Zaratustra sem sabermos quem foi Nietzsche, ou declararmos que existimos sem que isso decorra do facto de pensarmos, porque já não duvidamos nem metódica nem radicalmente, não quer dizer absolutamente nada sobre nós, mas sobre uma entidade que se deixou silenciosamente alienar.
Contra o vício de consumir já pensado, pense pela sua cabeça. Antes de falar, pense, antes de opinar, verifique, antes de fazer scrolling, desligue.
Declaração de Paris para a Filosofia
Nós, participantes das jornadas internacionais de estudo “Filosofia e democracia no mundo”, organizadas pela UNESCO, que ocorreram em Paris, nos dias 15 e 16 de fevereiro de 1995,
Constatamos que os problemas de que trata a filosofia são os da vida e da existência dos homens considerados universalmente,
Estimamos que a reflexão filosófica pode e deve contribuir para a compreensão e conduta dos afazeres humanos.
Consideramos que a atividade filosófica, que não subtrai nenhuma ideia à livre discussão, que se esforça em precisar as definições exatas das noções utilizadas, em verificar a validade dos raciocínios, em examinar com atenção os argumentos dos outros, permite a cada um aprender a pensar por si mesmo.
Sublinhamos que o ensino de filosofia favorece a abertura do espírito, a responsabilidade cívica, a compreensão e a tolerância entre os indivíduos e entre os grupos.
Reafirmamos que a educação filosófica, formando espíritos livres e reflexivos – capazes de resistir às diversas formas de propaganda, de fanatismo, de exclusão e de intolerância – contribui para a paz e prepara cada um a assumir suas responsabilidades face às grandes interrogações contemporâneas, notadamente no domínio da ética.
Julgamos que o desenvolvimento da reflexão filosófica, no ensino e na vida cultural, contribui de maneira importante para a formação de cidadãos, no exercício de sua capacidade de julgamento, elemento fundamental de toda democracia.
É por isso que, engajando-nos em fazer tudo o que esteja em nosso poder – nas nossas instituições e em nossos respetivos países – para realizar tais objetivos, declaramos que:
Uma atividade filosófica livre deve ser garantida por toda parte – sob todas as formas e em todos os lugares onde ela possa se exercer – a todos os indivíduos;
O ensino de filosofia deve ser preservado ou estendido onde já existe, criado onde ainda não exista, e denominado explicitamente ‘filosofia’;
O ensino de filosofia deve ser assegurado por professores competentes, especialmente formados para esse fim, e não pode estar subordinado a nenhum imperativo económico, técnico, religioso, político ou ideológico;
Permanecendo totalmente autónomo, o ensino de filosofia deve ser, em toda parte onde isto é possível , efetivamente associado – e não simplesmente justaposto – às formações universitárias ou profissionais, em todos os domínios;
A difusão de livros acessíveis a um largo público, tanto por sua linguagem quanto por seu preço de venda, a geração de emissões de rádio ou de televisão, de audiocassetes ou videocassetes, a utilização pedagógica de todos os meios audiovisuais e informáticos, a criação de múltiplos espaços de debates livres, e todas as iniciativas suscetíveis de fazer aceder um maior número a uma primeira compreensão das questões e dos métodos filosóficos devem ser encorajadas, a fim de constituir uma educação filosófica de adultos;
O conhecimento das reflexões filosóficas das diferentes culturas, a comparação de seus aportes respetivos e a análise daquilo que os aproxima e daquilo que os opõe, devem ser perseguidos e sustentados pelas instituições de pesquisa e de ensino;
A atividade filosófica, como prática livre da reflexão, não pode considerar alguma verdade como definitivamente alcançada, e incita a respeitar as convicções de cada um; mas ela não deve, em nenhum caso, sob pena de negar-se a si mesma, aceitar doutrinas que neguem a liberdade de outrem, injuriando a dignidade humana e engendrando a barbárie.
Esta declaração foi subscrita por:
Prof. Ruben G. Apressian (Instituto de Filosofia da Academia de Ciências de Moscou, Federação Russa), Prof. Tanella Boni-Koné (Universidade de Abidjan, Costa do Marfim), Prof. Tzotcho Boyadjiev (Universidade Saint Klément Ohridski, Sófia, Bulgária), Prof. In-Suk Cha (Secretário Geral da Comissão Nacional para a UNESCO da República da Coréia, Seul, República da Coréia ), Prof. Marilena Chaui (Universidade de Säo Paulo, Brasil), Prof. Donald Davidson (Universidade de Berkeley, USA), Prof. Souleymane Bachir Diagne (Universidade de Dakar, Senegal ), Prof. François Dossou (Universidade Nacional do Benin, Cotonou, Benin), Prof. Michaël Dummett (Oxford, Reino Unido), Prof. Artan Fuga (Universidade de
Tirana, Albânia), Prof. Humberto Gianini (Universidade de San Tiago do Chile, Chile), Prof. Paulin J. Houtondji (Universidade Nacional do Benin, Benin), Prof. Joanna Kuçuradi (Secretária Geral da Federação Internacional das Sociedades de Filosofia, Ancara, Turquia), Prof. Dominique Lecourt (Universidade de Paris VII, Paris, França), Prof. Nelly Motroshilova (Universidade de Moscou, Federaçäo da Rússia), Prof. Satchidananda Murty (Vice-Presidente da Federaçäo Internacional das Sociedades de Filosofia, Índia), Prof. Ulrich Johannes Schneider (Universidade de Leipzig, Alemanha), Prof. Peter Serracino Inglott (Reitor da Universidade de Malta), S. E. Mohammed Allal Sinaceur (Antigo Diretor da Divisäo de Filosofia da UNESCO, Rabat, Marrocos), Prof. Richard Susterman (Temple University, Filadélfia, USA), Prof. Fathi Triki ( Decano da Faculdade de Letras e Ciências Humanas de Sfax, Tunísia), Prof. Susana Villavicencio (Universidade de Buenos Aires, Argentina).”
Extraído de : UNESCO. Philosophie et Démocratie dans le Monde – Une enquête de l’UNESCO. Librairie Génerale Française, 1995, p. 13-14



