Meu pai foi emigrante. Partiu jovem solteiro para a Argentina. Exerceu funções modestas em hotelaria. Em visita a Portugal, e com mais de 40 anos de idade, realizou o exame da 4ª classe. O seu diploma, que emoldurei e vejo quase todos os dias, relembra-me quão sortudo fui. Durante esse período, casou com minha mãe lavradeira, teve dois filhos e regressou à Argentina – tinha eu três anos de idade, e minha irmã 18 meses. Apenas voltamos a ver nosso pai decorridos sete anos.
Durante esse período, nosso pai foi padeiro. Viveu com um primo e respetiva família. Não fruía de fins de semana nem de férias. Madrugava como madrugam os padeiros. Todos, todos, todos os dias. Tudo o que amealhava remetia para minha mãe. Um dia, estava eu sentado ao lado de minha mãe na soleira da porta de casa, vi-lhe caírem lágrimas em cima da carta que lia. Quando lhe perguntei porque chorava, respondeu-me: “não sei se voltaremos a ver o pai vivo”. Um cancro na próstata ameaçava a vida de meu pai, tendo apressado o seu regresso a Portugal, pouco tempo após a cirurgia. A viagem por barco, que durou 20 dias, na companhia da família com quem vivia, foi atribulada – vicissitudes da cirurgia recente.
Cerca de quatro anos após o seu regresso, nova atribulação afetou nosso pai e família. Tal como ocorreu com muitos portugueses, as nacionalizações consumiram-lhe uma parcela muito significativa das poupanças que tinha aplicado em ações de empresas, por sugestão de funcionários bancários. Mas nunca deu mostras de revolta. Viveu uma vida longa, trabalhando no campo, até aos 95 anos. Foram os seus sacrifícios e os de nossa mãe que permitiram à família conquistar uma vida minimamente digna. A minha licenciatura é fruto desses sacrifícios – e de uma ajuda significativa de uma bolsa dos serviços sociais da então Universidade Técnica de Lisboa. Sem esses dois apoios, a minha “oportunidade” teria sido nula.
Milhões de portugueses atravessaram calvários do mesmo teor – ou ainda mais espinhosos. Milhões e milhões de seres humanos, por esse mundo fora, buscam legitimamente uma vida melhor. Diabolizar a imigração é um ultraje moral e um sintoma de desumanidade. É ainda mais grave quando veiculada por líderes que se atribuem uma missão alegadamente encomendada por Deus. Escutar um deputado da nação, insuflado de retórica anti-imigração, desprovido de qualquer empatia, a afirmar soberbamente que “é mais importante receber um imigrante médico [alemão] do que um analfabeto de África” faz-me estarrecer. O que teria sentido meu pai se tivesse ouvido, de um deputado da nação argentina, que “é mais importante receber um médico alemão do que um português analfabeto”?
Não menos grave é o alinhamento de outras lideranças, que se intitulam de responsáveis, por uma narrativa sustentada na perceção, não nos factos. O diretor da PJ já garantiu não haver correlação entre crime e imigrante. Também afirmou que migrante documentado em Portugal é menos propenso a cometer crimes. Preste-se atenção ao que afirmou para se compreender porque a narrativa cavalgada por alguns líderes é, no mínimo, desonesta: “Os imigrantes, se forem inseridos, se tiverem um documento no mais curto espaço de tempo possível, tendencialmente não cometem crimes, porque estão a destruir todo o investimento que fizeram para vir para um território que pensam que vai ser seguro, onde vão fugir à fome, às violações, à morte esperada”.
Se a perceção de uma parcela significativa de portugueses não adere aos factos, é dever cívico e moral dos líderes políticos darem conta dos factos em vez de oportunisticamente cavalgarem a perceção. Se alguns imigrantes são votados à má sorte por máfias, estrangeiras ou portuguesas, que os escravizam, é absurdo e moralmente corrupto diabolizar as vítimas. Regule-se a imigração, sim – tal como é necessário regular a vida pública dos cidadãos nacionais. Mas haja coragem para recusar a diabolização dos imigrantes.
A humanidade tem progredido, em grande medida, por ação de lideranças física, psicológica e moralmente corajosas que foram capazes de enfrentar a estupidez, a malvadez e a crueldade. Que articularam uma visão para a vida pública centrada no caráter, na empatia e na compaixão. Que ensinaram, pelo exemplo, a necessidade de lutarmos contra os demónios que todos, potencialmente, temos dentro de nós. Acicatar e cavalgar emoções associadas ao ódio e desrespeito pelo outro, apenas porque é diferente ou simplesmente necessita da nossa empatia, representa corrupção moral. É especialmente grave, como o saudoso Papa Francisco bem enfatizou, quando essa narrativa assenta em argumentos de pseudomoral cristã.
Permito-me, pois, fazer duas sugestões a líderes políticos portugueses que precisam de desenvolver coragem moral. Primeira: vão em peregrinação ao túmulo de Francisco. Despendam algumas horas a escutar a sua mensagem. Durante a viagem de regresso, conversem sobre o que é melhor para o país. A segunda sugestão tomo-a de empréstimo do astronauta Scott Kelly, que escreveu o seguinte durante a crise Covid:
“Vista do espaço, a Terra não tem fronteiras. A disseminação do coronavírus mostra que o que compartilhamos é muito mais poderoso do que aquilo que nos separa, para o bem e para o mal. Todas as pessoas estão inevitavelmente interligadas, e quanto mais conseguirmos unir-nos para resolver os nossos problemas, melhor será para todos nós. Um dos efeitos colaterais de ver a Terra a partir do espaço, pelo menos para mim, é sentir mais compaixão pelos outros.”
Eis, pois, a sugestão que dirijo a líderes políticos que precisam de compreender melhor as virtudes dos migrantes: comprem uma viagem ao espaço para observar o planeta Terra. A distância não vos permitirá ver cabeças humanas. Mas, pelo menos, algo de mais virtuoso poderá entrar nas vossas cabeças acerca das migrações.