Seremos muitos em todo o mundo a refletir sobre a guerra Rússia – Ucrânia neste início de 2022. Mas apenas alguns compreenderão o ato histórico do Secretário-Geral ao fazer um apelo ao Presidente da Federação Russa em nome da Humanidade.
António Guterres, como Secretario Geral das Nações Unidas é a única pessoa que tem o direito e a obrigação de falar em nome da Humanidade. Mas enquanto ele o faz, o Presidente Putin fala em nome da defesa e dos interesses da Rússia, o Presidente Biden fala em nome da soberania da Ucrânia, e da missão da Nato, a União Europeia fala da sua defesa e do acesso ao Gás, a China do seu interesse em obter energia barata da Rússia, a Venezuela rejubila com a subida dos preços do petróleo, a Austrália mantêm o negócio anglo-saxónico dos submarinos e declara apoiar a soberania da Ucrânia, Taiwan condena a Rússia para condenar a China, que pelo seu lado confirma o seu apoio aos direitos soberanos da Sérvia (quem sabe se quererá no futuro ter bases militares chinesas ou russas) e por aí fora.
Onde está a Humanidade? Parece só haver Nações, mais ou menos ameaçadas, umas que recordam a História e a querem reverter, outras que não querem voltar ao passado mas pretendem que o futuro também seja nacionalista, todas em nome dos seus Povos, da sua defesa, da sua (forma própria) de democracia, todas em nome dos seus direitos soberanos.
E aqui está o cerne da questão e do Futuro da Humanidade.
Na qualidade em que aqui escrevo, presidente de uma rede de Empresas que subscreveram os 10 Princípios do Global Compact das Nações Unidas, não tenho qualquer opinião ou posição política. Saber quem (se alguém) tem razão neste imbróglio não me compete nem teria forma de o apurar. Mas compete-me refletir sobre o que isto significa para as Organizações e em particular para as Empresas, o “Business Sector”.
Lembremos as realidades:
- Já poucas empresas (e muito pequenas) estão reduzidas a um mercado doméstico. O normal é a inclusão em cadeias de valor (em diversos ramos) que atravessam todo o mundo, cruzando sistemas financeiros, fiscais, legislativos e normativos, bem como obtendo contributos de Pessoas de todas as religiões, etnias e culturas. As Empresas vivem e criam um Mundo Global. As Lideranças Organizacionais souberam e sabem lidar com a diversidade, todos os dias, centradas num único Propósito – resolver problemas, proporcionar soluções, criar valor, gerar riqueza para o seu ecossistema.
- A emergência climática é REAL e não conhece fronteiras nem egoísmos nacionais. Pelo contrário apela a uma cooperação internacional sem reservas para que as novas gerações (de qualquer parte do Planeta) possam ter uma vida digna e melhor que a nossa. Isso foi proclamado na Assembleia Geral das Nações Unidas e aprovada a Agenda 2030 e os ODS. As Lideranças Organizacionais orientaram os seus negócios para a Sustentabilidade, antes de mais por ser uma exigência das Pessoas e porque entenderam a oportunidade de inovação inerente à construção de um novo modelo de desenvolvimento.
- A Humanidade está a crescer em número. Esse crescimento é inversamente proporcional ao nível de desenvolvimento. Isso arrasta milhões de Pessoas a fugir da Fome e da Pobreza, as irmãs que geram também guerras e doenças. As grandes migrações ainda não são massivas, mas podem vir a ser, se não conseguirmos disseminar o desenvolvimento e erradicar esses flagelos. O mundo gera riqueza suficiente para todos saírem desses limiares, mas temos um sério problema de distribuição equitativa da riqueza produzida. Sem a resolução destas questões básicas (ODS 1 e 2) todo o nosso desenvolvimento pode ser submerso por vagas de deserdados que, sem mais nada a perder, criarão ruturas sem remédio. As Lideranças Organizacionais estão prontas a criar soluções para o desenvolvimento, pela educação, localização de empresas, transferência de saberes e tecnologias, entre outros meios.
O adversário que cria obstáculos a este Futuro é o egoísmo nacionalista, corporizado em elites que vêm na sobrevivência do velho conceito de Estado Nação a sua própria sobrevivência. Os Estados terão de aprender ser administradores de geografias que lhes foram confiadas, guardiões de culturas que foram desenvolvidas e que importa preservar, responsáveis por Pessoas que nele habitam e de que têm de cuidar, e por aí fora. O Estados devem reconhecer a sua limitação de soberania ou mesmo eliminar tal palavra, pois já nem os Reis são soberanos senão no plano simbólico. Os Estados não têm capacidade para gerir os seus assuntos se não o fizerem em cooperação, em harmonia (dinâmica, claro) com os seus parceiros, em respeito pelos interesses dos outros, sempre procurando o resultado win-win.
A única Soberania será da Humanidade e mesmo essa não é soberana sobre a Biosfera, sobre a Vida que a acompanha e viabiliza sobre a Terra e nos Oceanos.
As Lideranças Organizacionais estão ( cada vez mais ) cientes disto, mas não têm poder político, porque os dois mundos raramente se tocam por boas razões. Temos de corrigir isso. No fim de tudo as Pessoas são as vítimas dos egoísmos e das cegueiras, e pagam o preço sob a forma de desemprego, infelicidade, angústia e privações. As empresas são vítimas porque vêm a sua atividade em risco e as suas partes interessadas em crise. Haverá quem ganhe? Sem dúvida, sempre há quem ganhe quando a casa cai, mais que não seja o fornecedor de tendas. Mas no fim perdemos todos.
É tempo dos Líderes Empresariais, em particular e Organizacionais em geral, regressarem ao envolvimento na “res publica”, à participação aberta na Governação da comunidade, trazendo para o serviço da Sociedade o que aprendem na Administração das sociedades que lhes estão confiadas e disseminando esse conceito histórico – já somos uma só Humanidade, todos usamos e beneficiamos de produtos e serviços globais, todos cooperamos enquanto trabalhadores, todos viajamos e desfrutamos da Natureza. Chega de egoísmos populistas e nacionalistas. Se o não fizermos a tempo será muito mais difícil quando os tempos a isso nos obrigarem.
Contamos com as Nações Unidas, contamos com o Secretário-Geral. Por isso advogo uma maior ligação de Portugal ao Sistema das Nações Unidas, melhor compreensão da sua mensagem e do seu papel no mundo, maior envolvimento nas suas causas, maior empenho na cooperação internacional. Será o seguimento da vocação universalista de Portugal, será também uma forma de elevar as competências dos portugueses e portanto da competitividade da nossa economia.
Se desta guerra resultar maior abertura da nossa sociedade ao mundo e das nossas lideranças às dinâmicas do desenvolvimento e da cooperação, teremos algo de positivo como lição que emerge da tragédia de gente simples e trabalhadora que não sabe ao certo porque tem de viver pior, pagar mais, sofrer má sorte, ainda por cima logo a seguir à Pandemia, fruto de uma guerra que lhe chega pela TV, com os rótulos de “bons e maus” já atribuídos.
Por Mário Parra da Silva, Chair of the Board, Network Portugal do UN Global Compact