Foram ontem divulgados os resultados de um estudo pioneiro que revela que mais de um terço dos juristas e advogados portugueses (35%) não voltaria a escolher a profissão, no caso de considerar essa possibilidade.
A análise «O impacto da cultura organizacional na saúde mental e bem-estar dos profissionais do Direito», que contou com a participação de 823 profissionais de todo o país, indica ainda que a maioria reconhece que as exigências e obrigações da advocacia interferem na sua participação em atividades familiares.
A Líder esteve à conversa com Raquel Sampaio, advogada e diretora-executiva da Associação Direito Mental, instituição promotora do estudo, que falou abertamente sobre o estigma do tema da saúde mental ligado à profissão, a urgência do apoio emocional e a procura objetiva de boas práticas e soluções pelo bem-estar da classe.
Há profissões mais impactantes para a saúde mental. Onde se encontra a advocacia nessa escala?
A advocacia é uma profissão que pode ser particularmente impactante para a saúde mental devido à natureza do trabalho, que muitas vezes envolve prazos rigorosos, uma carga de trabalho intensa e a exposição a casos complexos e emocionalmente desafiantes. É, afinal, uma profissão de pessoas e para pessoas. Estes fatores podem contribuir para níveis elevados de stress e ansiedade entre os juristas e advogados. No entanto, a saúde mental é uma preocupação que deve ser tida (e mantida) em diversas profissões. No que nos diz respeito, estamos comprometidos em abordar esta questão no seio jurídico.
Como vai a saúde mental dos advogados portugueses?
A saúde mental dos advogados portugueses enfrenta desafios significativos. De acordo com os resultados do estudo desenvolvido em parceria com o ProChild CoLAB e o Centro de Investigação em Psicologia da Universidade do Minho, identificámos que mais de metade dos participantes (55%) admitiu que as responsabilidades profissionais muitas vezes os impedem de participar em atividades familiares e que mais de um terço não voltava a escolher a sua profissão. Além disso, 35% dos juristas e advogados que expressaram insatisfação com a sua carreira apresentaram sintomas mais acentuados de depressão, ansiedade e burnout.
Este facto está alinhado com as características e exigências inerentes a esta profissão e que foram agora confirmados. Face a esta realidade, torna-se imperativo criar consciencialização e fornecer apoio para melhorar a situação. No entanto, e no que diz respeito à mudança e à crescente consciencialização, estamos otimistas porque vemos que algumas organizações, incluindo alguns dos nossos associados (por exemplo a PLMJ, o Novo Banco e a Farfetch), já estão a adotar medidas para melhorar o bem-estar dos seus colaboradores.
Falar da prática da Lei e de saúde mental, que implica zonas de vulnerabilidade e de incerteza, pode parecer um paradoxo.
Compreendo como isso pode parecer paradoxal à primeira vista. A prática da lei muitas vezes envolve lidar com situações de grande incerteza e pressão, o que pode criar zonas de vulnerabilidade para os profissionais do Direito. Mas acreditamos que, precisamente por terem de lidar com casos jurídicos complexos e, por vezes, emocionalmente desgastantes, é crucial abordar esta realidade e garantir que os profissionais do Direito tenham acesso ao apoio que precisam.
Que boas práticas e estratégias de bem-estar, entre a classe de juristas e advogados, pode partilhar?
Existem inúmeras práticas e estratégias de bem-estar que podem ser adotadas pelos juristas e advogados. Estas incluem, desde logo, a quebra do estigma através da educação e da consciencialização sobre a saúde mental. Depois, a promoção de ambientes de trabalho saudáveis, o incentivo à gestão adequada do stress e a criação de uma cultura organizacional que valorize esta temática. É aqui que entra a associação: oferecemos apoio emocional empenhado na abertura, escuta ativa e comunicação empática, sem julgamentos; além disso, organizamos ações de sensibilização, por meio de colóquios, encontros e workshops com sociedades de advogados, empresas e faculdades de Direito. Com este estudo, pretendemos contribuir proactivamente para o aumento da literacia em assuntos de saúde mental na comunidade jurídica portuguesa e fornecer dados que espelhem a realidade de forma a criar soluções.
Como avalia o papel das lideranças na consciencialização e priorização do bem-estar nas empresas e organizações?
O papel das lideranças é crucial na consciencialização e priorização do bem-estar nas empresas e organizações. As lideranças têm a responsabilidade de estabelecer uma cultura organizacional que valorize a saúde mental, promova o equilíbrio entre trabalho e vida pessoal e crie um ambiente onde os profissionais se sintam à vontade para procurar ajuda quando necessário. Líderes transparentes que demonstram empatia, apoiam programas de bem-estar e fornecem recursos para o desenvolvimento pessoal dentro das suas organizações, contribuem significativamente para a melhoria da saúde mental no local de trabalho – e, consequentemente, na vida dos indivíduos.
A nova Lei de Saúde Mental (Lei 35/2023, de 21 de julho) entrou em vigor a 20 de agosto de 2023. O que significa na prática?
A entrada em vigor da nova Lei representa um passo importante para melhorar o acesso aos cuidados de saúde mental em Portugal, uma vez que estabelece diretrizes e procedimentos para garantir que as questões de saúde mental sejam tratadas de forma adequada e com a urgência que exigem no setor público. No setor privado, isso implica um maior foco dentro das organizações, especialmente as maiores, na prevenção, diagnóstico e tratamento de problemas deste foro. Também servirá para a promoção da educação e sensibilização do tema, a curto e longo prazo, reduzindo o estigma em torno da saúde mental e reconhecendo a sua importância na sociedade.
Sobre o futuro das organizações que ferramentas e skills considera essenciais a ter em conta?
Quanto ao futuro, é fundamental que as organizações priorizem a saúde mental dos seus colaboradores. A consciencialização e a capacidade de lidar com questões relacionadas com o stress e pressão também são competências valiosas para todos os profissionais de qualquer área. Ferramentas como programas de bem-estar, serviços de aconselhamento e formação em gestão de stress são essenciais para apoiar a saúde mental no local de trabalho.
Gostaríamos que, daqui para a frente, a Associação fosse um repositório de boas práticas nas organizações nestas matérias; um género de “fórum” a que as organizações possam recorrer. Queremos ajudar as organizações e as suas pessoas e para isso, contamos também com o efeito dominó ou contágio, queremos “desenvergonhar” as organizações.
O que faz a vossa Associação?
Somos uma Associação sem fins lucrativos dedicada a apoiar, sensibilizar e promover a saúde mental na comunidade jurídica portuguesa. Temos trabalhado em estreita colaboração com 29 organizações, de entre as quais as 13 maiores sociedades de advogados do país, assim como o Novo Banco, a Farfetch, e outros. Desde 2020, que a nossa missão, muito inspirada pela “Law Care”, é fornecer apoio e recursos que melhorem o bem-estar emocional e psicológico dos profissionais do Direito em Portugal.