A mulher encostou as costas à parede fria da cozinha. O chão estava colado de gordura, e o cheiro a fritos mal disfarçava o silêncio que antecede o impacto. Ele entrou devagar, com os passos pesados de quem já decidiu tudo antes de abrir a porta. O murro veio seco, sem anúncio, atingiu-lhe o maxilar e fez o corpo deslizar até às pernas da mesa. Por instantes quis gritar, mas a voz ficou presa na boca. Era o ar que se recusava a testemunhar. Então, ali, no chão, percebeu que aquela violência não era um acidente. Era um método, um ciclo e um país inteiro concentrado num gesto.
O novo relatório Portugal, Balanço Social 2025 volta a lembrar isso com uma clareza brutal. Quase metade das mulheres em Portugal já sofreu algum tipo de violência. Quase metade. Não é uma metáfora. São vidas. Rostos. Números que deviam queimar as páginas onde se escrevem. Esta semana, no dia 25, assinalou-se o Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres e a nota complementar Género e Violência em Portugal: Um Retrato da Desigualdade, divulgada pela Fundação la Caixa, o BPI e a Nova SBE, lança luz sobre uma realidade sombria que se mantém entranhada no quotidiano português.
A intimidade como território da agressão
Em Portugal, 46,8% das mulheres e 42,6% dos homens já foram vítimas de violência ao longo da vida. O número arrasta um desconforto que não encontra refúgio nas comparações. É metade do país marcada por agressões físicas, sexuais, psicológicas ou perseguições silenciosas.
A violência na intimidade é mais frequente entre as mulheres. 22,5% foram vítimas, contra 17,1% dos homens. O lar, esse espaço que tantas vezes se vende como seguro, transforma-se em fronteira de risco. As agressões físicas e sexuais repetem-se com mais insistência nas mulheres. 19,7% delas sofreram uma ou outra, e mais de metade viveu episódios contínuos, ritmados como um calendário interno que ninguém deve conhecer.
A violência sexual segue o mesmo padrão. 6,4% das mulheres foram vítimas. Nos homens, 2,2%. A desproporção não precisa de explicação. Precisa de vergonha pública. Precisava de urgência, mas o país habituou-se a normalizar aquilo que devia provocar um sobressalto diário.
O peso invisível da violência psicológica
A violência psicológica é a mais comum. 21,8% das mulheres e 16,8% dos homens. Não deixa nódoas negras, nem precisa de sirenes. Não precisa sequer de força física. Basta repetir-se ao ponto de se confundir com rotina. Instala-se devagar, altera a maneira de falar, de andar, de pensar. Primeiro desvia-se o olhar. Depois mede-se cada frase. Mais tarde, pede-se desculpa por existir espaço suficiente para desagradar. É assim que cresce. Vai ocupando a casa inteira. Depois instala-se na memória.
Muda o corpo sem que o corpo se dê conta. Dá ao estômago um aperto constante, ao sono um tremor que não se explica, às mãos uma hesitação que parece timidez mas é medo. A violência psicológica sussurra onde a física grita. E o sussurro é mais traiçoeiro porque convence a vítima de que talvez tenha exagerado, talvez tenha interpretado mal, talvez tenha merecido.
O agressor raramente precisa de levantar a voz. Basta-lhe moldar o ambiente. Basta-lhe a sugestão de que o erro está sempre do outro lado. Obriga a vítima a caminhar como se pisasse vidro invisível. Torna a respiração mais curta e a linguagem mais defensiva, fazendo do quotidiano um exercício contínuo de sobrevivência emocional.
Silêncio é a resposta nacional
A severidade das agressões expõe a desigualdade mais brutal. 62,7% das mulheres vítimas reportam danos físicos. 19,3% viveram limitações nas atividades diárias. Entre os homens, os valores caem. A diferença repete o padrão histórico: as mulheres sofrem mais e pior.
Apesar da dimensão do fenómeno, só 65,3% das vítimas contam o que aconteceu. E, dentro desse grupo, mais de 60% fala apenas com familiares ou amigos. Só 20% procura autoridades. O país conhece linhas telefónicas, casas de abrigo, apoios jurídicos. Mas entre conhecer e agir estende-se um fosso que mantém as agressões em surdina.
O silêncio não é apenas uma ausência de palavras. É estrutura e tradição. Uma herança que passa de geração em geração, como se Portugal tivesse aprendido a sofrer para dentro. Há medo, claro, mas há também vergonha, culpa, crença de que não vale a pena, de que nada muda, de que denunciar é expor a própria falha. O silêncio torna-se hábito nacional: protege o agressor, isola a vítima, enfraquece a justiça.
A insegurança que muda percursos
A sensação de segurança também revela a desigualdade. Só 77,1% das mulheres se sentem seguras a caminhar sozinhas à noite. Entre os homens, 89,5%. A discrepância não nasce de paranoia. Nasce de experiência.
Quase 44% das mulheres consideram a violência doméstica muito comum. Só 25% dos homens vê o mesmo. Já a violência exercida por mulheres contra homens é reconhecida como muito comum por 10,5% das mulheres e 6,9% dos homens. A percepção pública continua a seguir padrões rígidos, mesmo quando os números mostram que ninguém está totalmente imune.
Nos locais de trabalho, as desigualdades continuam expostas. 23,8% das mulheres sofreram assédio persistente. 12,3% foram vítimas de assédio sexual. Entre os homens, os números caem para 17,3% e 5,2%. Mais de metade das mulheres assediadas sexualmente viveu episódios repetidos, como se o assédio fosse uma função paralela do emprego.
Europa: um consolo imperfeito
No contexto europeu, Portugal apresenta números mais baixos do que a média da União Europeia. A violência na intimidade atinge 22,5% das mulheres portuguesas, contra 31,8% na UE. A violência física e sexual afeta 19,7% em Portugal, 30,7% na UE.
Mas a taxa de denúncia é menor aqui. 65,3% das vítimas portuguesas de violência física e sexual denunciam. Na UE, 68,2%. Este país está abaixo da média num lado e continua abaixo do necessário no outro. O progresso europeu não serve de abrigo.



