As palavras do escritor moçambicano tiveram eco num encontro onde se debateram os fantasmas da colonização e da falta de memória sobre essa época na História de Portugal. Mia Couto reforça a importância da cooperação Portugal – África neste processo e a ele junta-se Maria Inácia Rezola, Professora Universitária e Presidente da Estrutura de Missão das Comemorações dos 50 anos do 25 de abril, referindo que este processo é «mais do que destruir estátuas e apagar brasões».
É comum ouvir que Portugal foi um dos primeiros países a abolir a escravatura ou ainda ver celebrado um período por muitos chamado de “Descobrimentos”. «É preciso acabar com preconceitos, estereótipos e conhecer de facto a História para que ela seja descolonizada», acrescenta Maria Inácia Rezola, com quem a Líder teve a oportunidade de falar após o evento.

A conversa “Descolonizar o Pensamento”, aconteceu no passado dia 4 de julho, e juntou, para além de Maria Inácia Rezola e Mia Couto, o músico e ativista Dino d’Santiago, com a moderação de Paulo Mendes Pinto, Diretor Geral da Lusófona Brasil e do artista Pedro Abrunhosa, frente a uma plateia praticamente esgotada, no Auditório Eunice Muñoz, em Oeiras. Este evento fez parte do ciclo de conversas “Nómadas do Pensamento”, que tem periodicidade bimensal.
«A descolonização de acontecimentos históricos pode e deve aplicar-se em muitos outros domínios. Questões tão importantes como a memória do colonialismo e a descolonização, o 25 de abril e a passagem para a Democracia são fundamentais», acrescentou a Professora Universitária, urgindo a necessidade de literacia.
«Quando começamos a perguntar aspetos mais específicos sobre o conhecimento histórico desse período, a ignorância é a nota dominante»

A académica confia no que se tem vindo a fazer e afirmou que «esta descolonização chega a todos a partir do momento em que estão conscientes das fragilidades do seu conhecimento, se empenham e procuram [saber mais]».
Sobre o papel dos líderes nesta luta, Maria Inácia Rezola mostrou-se «muito otimista», referindo que «é preciso utilizar a linguagem e veículos certos para chegar às pessoas», consoante a idade e conhecimentos que tenham sobre o assunto. «É uma responsabilidade repartida para que esta descolonização seja efetiva», acrescentou a Historiadora.
Que fantasmas ainda prosperam na sombra do orgulho colonialista?
Uma memória coletiva construída por quem venceu e com base em «visões românticas que enganam o olhar incauto». «É o lusotropicalismo, mas também é o País dos brandos costumes, a célebre mistis nação e a criação do mulato ou o mítico encontro de culturas, que foi muito mais uma imposição», referiu Paulo Mendes Pinto, após um momento musical de Pedro Abrunhosa, que inaugurou o evento.
Maria Inácia Rezola corroborou esta ignorância assente na miragem daquilo que foi o passado português. Apesar de já se ter percorrido um longo caminho, há ainda muito por fazer no caminho da desconstrução, nomeadamente nas escolas e na forma como se ensina a História, uma vez que existe uma «afasia colonial» assente numa profunda falta de conhecimento.
Dino D’Santiago acrescentou que a ignorância leva a uma apatia da população face muitos problemas derivados do colonialismo. «George Floyd morreu e o Mundo saiu à rua. O Bruno Candé morreu, ninguém saiu», enfatizou.

O artista de ascendência cabo-verdiana referiu que não se pode esperar por uma intervenção quase divina para mudar a realidade e afastar estes fantasmas, mas sim sermos atores da mudança. «Portugal ainda se sente a vítima principal da guerra colonial», declarou.
Outro fator crucial, segundo Mia Couto, é combater o eurocentrismo e a lente através da qual a maior parte dos portugueses vê o colonialismo. «A Europa está a deixar de ser o centro de tudo e pensa que o Mundo está a acabar por causa disso», referiu.

A importância dos líderes e figuras de referência na descolonização
As referências que nos chegam diariamente são também cruciais para mudar mentalidades e inspirar as gerações futuras. Dino D’Santiago afirma que, atualmente «os africanos têm orgulho em ser africanos» e em falar crioulo ou outras línguas que não a portuguesa. «Assumir que falo e posso cantar em crioulo mudou a minha vida», referiu, vincando o progresso que se tem feito na descolonização, ainda que lentamente.
«A minha sobrinha Eva diz que quer ser Presidente da República. Isto era impensável no meu tempo, o máximo que eu poderia almejar era ser o motorista do Presidente»

Mia Couto voltou a urgir a necessidade de conhecer e ouvir verdadeiramente os países descolonizados e incluir «o olhar dos africanos». «Mais do que resgatar uma compensação económica, deve criar-se uma ponte e fazer coisas em conjunto», referiu o escritor moçambicano, sugerindo por exemplo a construção de um museu da escravatura em Portugal.
Dino D’Santiago unificou o debate com duas citações, confiando nelas a chave para «descolonizar o Mundo»: uma de Mia Couto que diz «Para que as luzes do outro sejam percebidas por mim, devo por bem apagar as minhas no sentido de me tornar disponível para o outro». A segunda, de Pedro Abrunhosa, que dita «De costas voltadas, não se vê o futuro».


