As migrações continuam a esculpir o cenário global, com a Europa a brilhar como um farol, atraindo aqueles que fogem da miséria e procuram um novo começo. Até outubro de 2024, registaram-se cerca de 158 mil chegadas de migrantes irregulares, segundo dados do Conselho Europeu. Só até junho deste ano, e que se saiba oficialmente, a União Europeia acolheu 74 mil migrantes que atravessaram o Mar Mediterrâneo. Durante a jornada, mais de 1200 pessoas morreram ou desapareceram nessas rotas marítimas.
Para o Dia Internacional das Migrações, a Líder conversou sobre diásporas com um especialista em relações internacionais.
Bruno G.M. Neto liderou programas de desenvolvimento e geriu crises humanitárias em mais de 40 países. Embora o desempenho do seu trabalho seja maioritariamente em ambiente de escritório, foi no terreno que sentiu as dores de vários povos. Nasceu no Tramagal, uma vila do concelho de Santarém, mas virou-se para o mundo desde cedo. Da Mongólia, depois de muita burocracia, trouxe uma cadela que lhe enche o coração.
No Quénia conheceu a companheira, oriunda do Chade, e a relação entre os dois resultou num filho. Aos 46 anos, tem no currículo a condecoração da Ordem da Liberdade, por serviços relevantes prestados em defesa dos valores da civilização. Bruno é isso mesmo: do povo e pelo povo, pertencendo aos lugares onde vai e costuma ficar, a fazer o que melhor sabe, que é salvar vidas.
Quais são os maiores desafios enfrentados pelas pessoas que migram à procura de uma vida melhor?
As migrações têm várias faces e desafios. Dentro das migrações mais convencionais, por exemplo, encontramos pessoas que migram por razões económicas, à procura de melhores condições de vida. Mas há também migrações mais complexas, como as que pressupõem rotas ilegais, onde além de custos financeiros elevados, as pessoas têm de lidar com redes de tráfico humano ou pagar a intermediários para conseguir avançar.
Um exemplo muito comum está na América Central, onde vivi e trabalhei por algum tempo. Muitas pessoas de lá tentam emigrar para os Estados Unidos, enfrentando dificuldades extremas. Há ainda os que regressam às suas origens após falharem na tentativa de se estabelecerem no exterior, deixando para trás famílias desfeitas e sonhos interrompidos.
Outro exemplo que me impactou recentemente foi o caso de uma jovem da Serra Leoa no Mediterrâneo. Sobreviveu três dias no mar após o naufrágio da embarcação em que estava. Todos os outros morreram. Imagine o que essa pessoa enfrentou antes de sequer chegar ao Mediterrâneo.
São histórias duras e, muitas vezes, trágicas. Como avalia o impacte dessas jornadas na vida das pessoas?
Essas migrações são verdadeiramente devastadoras. As pessoas abandonam tudo — a casa, a família, a sua segurança — à procura de algo que muitas vezes não sabem exatamente o que é. E, mesmo assim, seguem em frente, motivadas por promessas que nem sempre se cumprem.
Em muitos casos, mulheres jovens, especialmente, acabam em situações de exploração. Recordo-me de um caso envolvendo jovens nigerianas que foram enganadas. Prometeram-lhes empregos em casas de família, mas ao chegarem a destinos europeus, como Portugal, França ou Holanda, tiveram os seus passaportes confiscados e foram obrigadas a trabalhar sob condições desumanas. Conheci um rapaz, das Honduras, que perdeu as duas pernas, um braço e um olho numa emboscada enquanto tentava fugir com a família. Foi violado várias vezes. Esse rapaz tinha o sonho de estudar, de fazer algo mais pela vida, mas foi destruído. Essa é a realidade que muitos enfrentam nas jornadas migratórias. Perdem tudo. Até a esperança.
Durante as suas missões, que já são muitas — mais de 30, certo? —, houve alguma experiência local que tenha mudado a sua visão sobre as migrações?
40! Sim, sem dúvida. Há muitas histórias marcantes, mas uma das que mais me tocou foi a do Congo. Trabalhei lá, em particular na região dos Grandes Lagos, próximo ao Lago Kivu e ao Lago Tanganyika, com base em Goma. Essa cidade, considerada uma das mais perigosas do mundo, não apenas enfrenta conflitos entre dezenas de grupos armados, mas também é constantemente ameaçada por um vulcão ativo que, por vezes, lança lava sobre a cidade.
A complexidade da situação no Congo é enorme. As pessoas que tentam migrar dali não estão apenas a fugir da pobreza, mas de uma violência extrema e de catástrofes naturais.
Trabalhar nessas regiões fez-me perceber a resiliência e a força do ser humano, e mais ainda a urgência de criarmos soluções que não apenas ajudem as pessoas a fugir, mas que lhes proporcione dignidade, onde quer que estejam.
O que considera essencial para melhorar o suporte às populações migrantes?
Em primeiro lugar, precisamos de rotas migratórias seguras e legais. Além disso, é essencial fornecer apoio às pessoas nos seus países de origem para que não se sintam obrigadas a arriscar a vida. E, para quem já migrou, é importante que os países de acolhimento invistam em integração real, com acesso a trabalho digno, educação e apoio psicológico. Sem essas medidas, continuaremos a ver histórias de sofrimento como as que mencionei.
A migração é um direito, mas também deveria ser uma escolha informada e segura.
Voltando ao Congo e a Goma….
Goma é uma cidade incrível, mas também carregada de desafios. Além dos desafios naturais, a situação é alarmante no que diz respeito às minas de cobalto, que são exploradas de forma ilegal e perigosa. As crianças são colocadas em condições desumanas, literalmente presas pelos pés e enfiadas em buracos enquanto escavam para extrair minérios. Há casos em que colocam uma mangueira na boca das crianças para que elas respirem. Existe também uma prisão em Goma onde estavam miúdos a partir dos cinco anos de idade. Eram raptadas por milícias armadas. Isso gerou uma rede de migração infantil organizada. Algumas iam para orfanatos, outras desapareciam. É desumano.
Parece haver também uma forte presença de interesses externos, com armas e recursos vindos de fora. Pode falar mais sobre isso?
Há um fluxo constante de armas vindo de Israel, Estados Unidos, França, Rússia e outros países. Esses armamentos alimentam os conflitos e criam o caos, facilitando a exploração ilegal de recursos. Quando destróis a estabilidade política de uma região, fica mais fácil controlar e explorar.
Isso leva-nos à questão da legislação das migrações. Como vê as políticas de migração, especialmente da União Europeia, em relação a essas crises?
As políticas de migração da União Europeia têm falhado em lidar com a raiz do problema. Em vez de apenas focarmos no controle de fronteiras, deveríamos olhar para as causas que forçam as pessoas a migrarem: guerras, pobreza, falta de acesso à educação e à saúde.
A maior parte das pessoas não quer sair das suas terras. Elas migram porque não têm escolha. Se houvesse condições dignas de vida nos seus países, essa crise migratória seria muito menor.
Então, acredita que investir nos países de origem pode ser uma solução mais eficaz?
Exatamente. África é um continente incrivelmente rico em recursos, mas esses recursos são explorados para beneficiar outros países. Se houvesse um sistema justo de extração e utilização dessas riquezas, poderíamos melhorar a educação, a saúde, a infraestrutura. Isso reduziria drasticamente as migrações. A verdade é que as pessoas querem viver perto das suas famílias, nas suas comunidades, sem ter de fugir para sobreviver.
Essa é uma perspetiva poderosa. Mas e quanto às lideranças políticas? O que acha da direção na Europa?
Há uma crise de liderança na Europa. Estamos cada vez mais voltados para o nosso umbigo, com um aumento do etnocentrismo. Isso enfraquece os ideais europeus de solidariedade e diversidade. Sem uma visão clara e lideranças fortes, as políticas acabam a ser baseadas em interesses de curto prazo, não em soluções sustentáveis. É preciso recuperar a literacia social, a capacidade de entender e conectar os factos, para que possamos tomar decisões mais humanas e racionais. Parece que seguimos à deriva: um dia é o Biden, outro dia o Trump, ou o Reino Unido com o seu ziguezague. As lideranças democráticas perderam o rumo, e as políticas tornaram-se reativas, sem a essência que deveria ser a base da União Europeia: solidariedade e cooperação.
Sobre solidariedade, o que acha das políticas que têm sido aplicadas nas fronteiras nos países europeus e também pelo mundo?
O controlo de fronteiras é necessário, mas não pode ser cego ou cruel. Deve haver sistemas que permitam uma gestão humana eficiente. Precisamos de um equilíbrio entre o acolhimento e a organização. Caso contrário, acabamos por radicalizar o discurso e criar ainda mais divisões.
Pode compartilhar uma história de resiliência ou superação que o tenha marcado profundamente?
Conheci dois irmãos em 2014, menores não acompanhados. Um rapaz de 15 anos e uma menina de 10. Eles vieram de um país em conflito, onde o pai, que trabalhava nas minas, foi acusado de engolir diamantes sendo morto brutalmente à frente deles. Eles fugiram, passaram por horrores indizíveis e chegaram a Portugal sem falar a língua e sem qualquer suporte.
Hoje, esses dois jovens são adultos independentes, integrados, e vivem com dignidade. Para eles, o futuro parecia impossível.
Se as fronteiras tivessem estado completamente fechadas, provavelmente teriam morrido. Essa é a diferença que políticas de acolhimento podem fazer.
Como analisa o papel das migrações no contexto político e económico europeu?
Há uma hipocrisia gritante. Por um lado, dizem que querem controlar as fronteiras e restringir a entrada, mas, por outro, precisam desesperadamente de trabalhadores. O problema é que as políticas não são pensadas a longo prazo, mas apenas para responder às crises imediatas.
E temos de ser claros: não existem “pessoas ilegais”. O que existe são pessoas em situações irregulares. Essa diferença é fundamental para humanizar o debate e entender que migrar é uma necessidade, não um crime.
Como foi lidar com as frustrações do trabalho humanitário, especialmente diante da ineficácia de algumas soluções?
Há momentos de grande frustração. Por exemplo, trabalhei numa região da Somália onde a cidade era inundada duas vezes por ano, por águas que vinham das montanhas da Etiópia. Isso é um problema conhecido há décadas, mas nada foi feito para resolvê-lo. Milhões são investidos em ajuda humanitária, mas falta um planeamento real, soluções duradouras.
Por outro lado, o impacte imediato é visível: são salvas vidas e a fome é aliviada. Então, aprendes a equilibrar a micro e a macro perspetiva. Não vamos resolver tudo, mas cada pequena melhoria é uma vitória.