O comércio internacional está a passar por uma profunda transformação. O mundo globalizado, que durante décadas seguiu um modelo de integração crescente, assiste agora a um realinhamento das cadeias de abastecimento e a novas dinâmicas comerciais impulsionadas por tensões geopolíticas e rivalidades estratégicas. De acordo com a atualização de 2025 do relatório Geopolítica e a Geometria do Comércio Global, do McKinsey Global Institute, a dependência mútua entre países continua a ser um fator essencial, mas os padrões de comércio estão a ser redefinidos, criando novos blocos comerciais e alterando a distribuição de fluxos económicos.
O fim da hiperglobalização?
Durante décadas, o comércio mundial seguiu uma trajetória de crescente interligação, com países a apostarem na eficiência através de cadeias de abastecimento dispersas pelo globo. No entanto, nos últimos anos, a lógica da eficiência tem sido confrontada com uma nova realidade: a segurança económica. A pandemia, a guerra na Ucrânia e as tensões sino-americanas aceleraram uma tendência de desglobalização parcial, em que os países procuram reduzir vulnerabilidades estratégicas e garantir o controlo sobre recursos e tecnologias críticas.
Este movimento não significa um regresso ao protecionismo absoluto, mas sim um redirecionamento das parcerias comerciais de acordo com alinhamentos políticos. As trocas económicas estão a ser influenciadas por um novo fator: a ‘distância geopolítica’. O relatório da McKinsey avalia essa distância com base em padrões de votação na Assembleia Geral da ONU, demonstrando como países com visões políticas divergentes estão a reduzir a sua interdependência comercial.
Os novos blocos comerciais
Os Estados Unidos e a Europa têm reduzido a sua dependência da China e da Rússia, fortalecendo relações com aliados estratégicos. O México e o Vietname emergem como beneficiários desta mudança, uma vez que muitas empresas americanas procuram alternativas à China para a produção industrial. A União Europeia, por sua vez, substituiu parcialmente a Rússia como fornecedor de energia e matérias-primas, diversificando importações de gás natural liquefeito (GNL) e intensificando laços comerciais com os EUA e parceiros no Médio Oriente e Norte de África.
A China, por outro lado, está a reforçar o comércio com economias emergentes. Em 2022, pela primeira vez, a maioria das exportações chinesas teve como destino países em desenvolvimento, e essa tendência só se aprofundou. A América Latina, a África e o Sudeste Asiático estão a tornar-se cada vez mais relevantes para Pequim, numa tentativa de reduzir a exposição ao Ocidente e consolidar a sua influência económica global.
As cadeias de abastecimento estão mesmo a mudar?
Apesar do discurso político de ‘desacoplamento’ entre China e Estados Unidos, os dados do relatório da McKinsey mostram que o comércio entre as duas potências ainda se mantém elevado, mesmo com algumas oscilações. Empresas multinacionais continuam a depender de fábricas chinesas, e muitas das supostas relocalizações da produção envolvem apenas um desvio estratégico: em vez de importarem diretamente da China, as empresas americanas recorrem a países como o Vietname ou a Índia, onde as cadeias de produção ainda estão profundamente ligadas à economia chinesa.
Além disso, o relatório destaca que, embora haja um esforço para diversificar fornecedores, muitos produtos críticos continuam altamente concentrados em poucos países. Um exemplo claro é o mercado de minerais raros, essenciais para a produção de tecnologia e baterias elétricas, onde a China continua a ser o principal ator global.
O impacte nos consumidores e empresas
As empresas estão a enfrentar um dilema. Por um lado, querem reduzir riscos geopolíticos e evitar sanções ou perturbações nas cadeias de abastecimento. Por outro, reconfigurar a produção e diversificar fornecedores tem custos elevados. O impacte já é visível nos preços de certos bens e matérias-primas, e os consumidores podem sentir o efeito destas mudanças através de um aumento dos custos de produção, menor disponibilidade de alguns produtos e, possivelmente, uma desaceleração do comércio global.
Os governos, por sua vez, estão a utilizar políticas industriais para incentivar a produção doméstica em setores estratégicos, como semicondutores e energias renováveis. Os Estados Unidos lançaram o CHIPS Act e subsídios para produção interna, enquanto a Europa aposta na diversificação energética e na reindustrialização.
Portugal: entre a Europa e o mundo Lusófono
Portugal, por sua vez, continua a posicionar-se como um ponto de entrada para o mercado europeu, beneficiando-se da sua localização estratégica e da sua rede de relações históricas, especialmente com o Brasil, os países africanos de língua portuguesa e a China.
A economia portuguesa tem reforçado laços comerciais com os Estados Unidos, alinhando-se com a tendência europeia de reduzir a dependência de mercados como a Rússia. No entanto, as exportações para a China continuam a ter um peso significativo, especialmente em setores como vinhos, cortiça e tecnologia. Por exemplo, 95% dos 100 vinhos mais vendidos na China estão vedados com rolhas de cortiça portuguesa.
O Brasil é outro parceiro estratégico para Portugal. Com o aumento do fluxo de investimentos entre os dois países, o setor imobiliário e o turismo tornaram-se áreas chave, impulsionadas pelo crescimento do número de brasileiros que escolhem Portugal para viver e investir. O setor tecnológico também tem registado um aumento de colaborações entre startups e empresas dos dois países.
Ao nível da União Europeia, Portugal enfrenta desafios e oportunidades. A transição energética e a digitalização da economia criam novos caminhos para a inovação, mas a concorrência entre blocos económicos significa que o país terá de adaptar a sua estratégia para continuar relevante no comércio global. O investimento em energias renováveis, como o hidrogénio verde, pode ser uma aposta de futuro, permitindo a Portugal posicionar-se como um fornecedor de energia limpa para a Europa e outros mercados.
O futuro do comércio global
O comércio mundial não vai desaparecer, mas a sua estrutura está a mudar rapidamente. O que antes era um sistema relativamente uniforme de trocas económicas globais agora parece estar a fragmentar-se em blocos distintos, onde os fatores políticos pesam tanto quanto os económicos.
Para as empresas e governos, isso significa que as decisões estratégicas terão de considerar não apenas custos e eficiência, mas também riscos políticos e a volatilidade de uma nova ordem global. A interdependência comercial continua a ser uma realidade inevitável, mas o seu formato e dinâmica estão a ser reformulados, tornando o comércio internacional um reflexo cada vez mais explícito das tensões e alianças que definem o mundo atual.


