O “Manifesto tecno-otimista”, da autoria do multimilionário Marc Andreessen, é de leitura obrigatória. Não pela sua virtude, mas pelo messianismo perigoso. O Manifesto começa por alertar-nos para mentiras como: “Dizem-nos para ficarmos zangados, amargurados e ressentidos com a tecnologia”. A essas mentiras responde com verdades como esta: “A tecnologia é a glória da ambição e das realizações humanas, a ponta de lança do progresso e da realização do nosso potencial.”
Segue-se um extenso rol de crenças inabaláveis, entre as quais as seguintes. A suprema sabedoria dos mercados protege os mais vulneráveis. A maquinaria tecno-capital não é anti-humana – é, antes, a coisa mais pró-humana que existe. A inteligência é o principal motor do progresso. As pessoas e as sociedades mais inteligentes superam as menos inteligentes em praticamente todas as métricas que possamos usar. A Inteligência Artificial (IA) é a nossa alquimia, a nossa pedra filosofal. Regular e desacelerar a IA custa vidas humanas. O progresso tecnológico jorra abundância. “Não há qualquer problema material (…) que não possa ser resolvido com tecnologia”. Acreditemos “no romance da tecnologia, da indústria. No eros do comboio, do automóvel, da luz elétrica, do arranha-céus. E no do microchip, da rede neural, do foguetão, da divisão do átomo”. Devemos crer “na ambição, na agressividade, na persistência, na implacabilidade”, assim como no mérito e no sucesso. As democracias liberais tecnologicamente fortes salvaguardam a liberdade e a paz.
E quem são os inimigos deste paraíso glorioso? A resposta é clara: “A nossa sociedade tem sido submetida a uma campanha de massas durante seis décadas – contra a tecnologia e a vida – sob nomes como ‘risco existencial’, ‘sustentabilidade’, ‘ESG’, ‘objetivos de desenvolvimento sustentável’, ‘responsabilidade social’, ‘princípio da precaução’, ‘confiança e segurança, ‘ética tecnológica’, ‘gestão de risco’ (…)”.
Há algo de profundamente perturbador no Manifesto. As pessoas são representadas como entidades tecno-racionais consumistas – ou como autómatos cujo valor é medido em termos de produtividade. O documento ignora as dimensões relacional, comunitária, afetiva, familiar e espiritual dos humanos. Subestima a miséria da guerra, dos sem-abrigo e da pobreza extrema que é vizinha da abastança.
Esquece que alguns dos maiores facínoras da História eram/ são inteligentes. Faz vista a grossa à miséria que alguns pseudo-visionários e magnatas das criptomoedas têm gerado. Ignora que o mérito requer oportunidades – e que estas ficam a léguas da vida de milhões de pessoas. Omite um facto: o mérito e o sucesso também dependem da sorte, da oportunidade, do investimento do Estado, e dos contributos de muitas outras pessoas que dão o corpo (e a mente)… ao manifesto. O documento é, pois, o epítome da soberba. Mas não é caso isolado.
Outros multimilionários da tecnologia – idolatrados e deslumbrados consigo próprios – atribuem-se ambições e projetos messiânicos potencialmente perigosos. Paul Krugman rotulou-os, no New York Times, de “oligarcas petulantes”. Atribuem-se uma sabedoria e uma visão salvífica em domínios que não os tecnológicos – incluindo o político e o desenvolvimento social. Também no New York Times, Ezra Klein denominou esta ideologia como “futurismo reacionário”. E Elizabeth Spiers referiu-se ao Manifesto como “A visão horrível e estúpida de um patrão da tecnologia acerca de quem deveria governar o mundo”.
Reconheçamos: a tecnologia pode ser uma bênção, uma fonte de progresso económico e social. Importa valorizar os empreendedores e criar-lhes condições para que a sua estimável função e as suas ambições sejam concretizadas. Mas a realidade também nos mostra que, deixados à sua sorte, sem regulação, estas ambições podem transformar-se em maldição. Este risco é particularmente grande quando o sucesso, a fama e o poder desencadeiam sentimentos de omnipotência e omnisciência.
Leia-se esta prosa de Marc Andreessen: “O amor não escala, pelo que a economia só pode funcionar com dinheiro ou força. O experimento da força foi realizado e não resultou. Fiquemos [pois] pelo dinheiro”. Eis o que, a este propósito, Jemima Kelly escreveu no Financial Times: “Ter simplesmente mais não é a resposta para os nossos problemas mais graves. Apenas as coisas que não podem ser ‘escaladas” é que realmente ajudam: compaixão, gentileza, empatia e, sim, amor”. O mundo de Andreessen é, pois, uma distopia lunática.
Este artigo foi publicado na edição de inverno da revista Líder, que tem como tema The Touch of the Future. Subscreva a Líder aqui.

