A man with a mission. Assim, bem à americana, poderíamos estar a anunciar o mais recente filme saído da indústria cinematográfica de Hollywood. A realidade anda, pelos dias de hoje, de mãos dadas com a ficção, pelo que o título cabe que nem uma luva ao espírito que assiste à personalidade complexa de Vladimir Putin. O pensamento político-filosófico do “urso” ex-agente do KGB é o mote para o livro que Michel Eltchaninoff escreveu, “Na Cabeça de Putin”. Mais do que um processo, a História é uma herança moral que o líder russo pretende continuar a escrever, assumindo, se necessário for, um compromisso com a tragédia humana.
Fale-nos do nascimento deste livro e do seu porquê.
Escrevi este livro em 2014, logo após a revolução democrática ucraniana de Maidan, a anexação da Crimeia e o início da guerra no Donbass. Porque me parecia existir fora da Rússia, especialmente em França, mas também em muitos países, uma visão caricatural de Vladimir Putin. Amado ou odiado, Putin era visto como um “bad boy”, alguém que gosta de chocar, fazer piadas e intervir na ordem internacional. Putin foi sendo aquele que se opunha cada vez mais aos Estados Unidos da América, ao Ocidente em geral. Comecei este trabalho de investigação primeiro a título individual; foi algo que precisei de fazer porque vivi na Rússia nos anos 1990 e depois nos anos 2000. Nos anos 90 Putin ainda não era uma das grandes figuras da Rússia, mas havia já uma espécie de “putinismo”, uma certa ideologia que as elites políticas russas, e Putin em particular, foram implementando de forma muito estudada, muito consciente, ano após ano.
Fale-nos um pouco desse aspecto caricatural de Putin. A que se devia, porque se tinha essa imagem dele?
Muito em parte se ficou a dever àquelas imagens dele divulgadas no mundo inteiro. De torso nu em cima de um cavalo, por exemplo… Queria verdadeiramente sair da imagem caricatural, da imagem excessivamente simples de Putin: o musculoso, o bad boy, para tentar entender o que está na mente do líder russo desde 2000. E se a partir da sua mente pudéssemos extrair diretrizes mais ou menos coerentes para entender as suas decisões isso seria excelente. O meu método foi muito simples: ler todos os discursos de Vladimir Putin, as suas declarações, entrevistas, e ver quais eram as suas referências, os autores que ele citava para construir uma psicologia, um modo de pensar. Mas, sobretudo, para delinear uma doutrina de Putin.
E a que conclusões chegou?
No que concerne aos episódios de 2014, tentei mostrar que havia um discurso de oposição ao Ocidente, que foi construído de forma muito estruturada, e que era já um discurso de guerra, de confrontação assumida. Vemos hoje que isso era factual. No domínio psicológico, há que perceber que Putin não é uma personagem simples, há nele muita complexidade. E há nele também uma estranha relação com a filosofia.
Refere-se à Filosofia, mas para Putin trata-se de uma verdadeira paixão pelas ideias ou apenas o entendimento destas e da filosofia como um instrumento para atingir os seus fins?
A questão faz todo o sentido. A minha primeira hipótese é que se tratou, antes de tudo, de um instrumento para, de facto, consolidar o seu discurso e por via deste justificar as suas decisões políticas. O que Putin queria entregar ao seu povo era uma visão do mundo, mas não apenas ao seu povo. Ele queria, e quer, impor a sua visão do mundo, uma visão russófila, a todas as sociedades do mundo. E para consolidar esta visão sentiu necessidade de legitimá-la com o legado intelectual de pensadores e filósofos. Sabendo que ele não é de todo um filósofo – o que lhe interessa é a História – soube que precisava de se rodear por pessoas interessadas em Filosofia.
Antes de avançarmos para as influências concretas, filosóficas e outras, de Putin, gostávamos de saber como ocorreu a evolução do seu pensamento ideológico desde os tempos em que era um agente do KGB na antiga RDA até à atualidade. Por exemplo, encontrou nesse percurso algum paradoxo, alguma incongruência na cabeça de Putin? Por exemplo, há um aparte no livro em que fala do seu jeito de «falso liberal»…
A questão do liberalismo original de Putin é muito complexa. Em 1991, ele tinha acabado de voltar de Dresden, na Alemanha, onde era agente do KGB, e viu-se a trabalhar com o presidente liberal da câmara municipal de São Petersburgo, Anatoli Sobtchak, que era muito próximo dos democratas e daqueles que queriam derrubar o Comunismo. E é verdade que na época do putsch de agosto de 1991, Putin não ficou do lado dos conservadores, dos golpistas, dos comunistas. Pôs-se do lado dos liberais e dos democratas. Portanto, ele tem uma espécie de “atestado” de democrata que adquiriu no início dos anos 90. Além disso, quando chegou à Presidência, em 2000, Putin tinha muitas referências pró-europeias, pró-liberais; quando dava entrevistas, quando fazia visitas, por exemplo, citava muito Immanuel Kant, o pensador iluminista. Dizia que a Rússia era antes de tudo europeia… então, ele tinha realmente um discurso de abertura sobre o liberalismo e, digamos, o pensamento democrático europeu. Mas é muito difícil saber se Putin era sinceramente liberal. A minha própria hipótese é que o liberalismo era para ele, enquanto ex-agente do KGB, uma espécie de disfarce, de máscara.
Portanto, logo então as ideias serviam-lhe como instrumento para chegar onde verdadeiramente queria.
Sem dúvida. No início dos anos 90, era importante estar do lado bom, isto é, estar do lado dos que iam vencer os comunistas e derrotar os nostálgicos da URSS. A seguir, no início dos anos 2000, para seduzir o Ocidente, ele colocou uma máscara do liberal. Mas, no fundo, creio que Vladimir Putin, a camada mais profunda da sua visão do mundo, é a União Soviética. Acredito que o que é constante no seu pensamento é este sovietismo, que não é comunismo. No domínio psicológico, há que perceber que Putin não é uma personagem simples, há nele muita complexidade. E há nele também uma estranha relação com a filosofia.
O sovietismo será então a ideologia que o define?
Sim, com certeza. Mas na crença de que se trata de uma evolução natural da História russa, ou seja, o pensamento fundamental de Putin é que a Rússia é um império, um império em evolução. Um império que já teve várias formas. Um império que evoluiu de um modelo czarista e que se transformou em sovietismo, embora sempre com a mesma lógica subjacente, a de um império russo que não obedece, enquanto potência mundial, senão aos seus desejos de expansão.
Mas é uma democracia, embora um conceito muito diferente de democracia como a entendemos. Fala de uma “democracia soberana”, inspirada em Vladislav Surkov, a quem chama de “Rasputin de Putin”. O que significa esta «democracia soberana»?
A democracia soberana foi uma ideia que surgiu no primeiro mandato de Vladimir Putin. E que teve na sua base as ideias de Surkov, que, no início do século XXI, era um dos grandes conselheiros ideológicos de Putin – hoje já não o é. Por base tinha a ideia de que o Presidente representa o povo, logo aquele é democrático por essência; quanto à sua soberania, ela é-o na medida em que se afasta do pensamento ocidental e das suas regras, em particular as regras de respeito pelas minorias (minorias homossexuais ou étnicas, por exemplo), assumindo que que é necessário inventar uma “democracia à russa”. Depois Putin foi ao encontro do pensamento de Ivan Ilyin, um filósofo de meados do século XX, cujas ideias iam ao encontro de uma “democracia de aclamação”; ou seja, o chefe, o guia justifica-se pela aclamação do povo, ele é, de algum modo, a encarnação das suas vontades e anseios, assim se eximindo a seguir as regras jurídicas abstratas e complexas vigentes nas democracias ocidentais. A verdade é que todas estas teorias de justificação e legitimação do poder resultaram numa pseudodemocracia, simplesmente porque as regras do debate democrático não são respeitadas na Rússia.
A ideia de Putin acerca de uma pretensa superioridade moral da Rússia baseia-se em quê exatamente? Porque já entendemos que Putin é um soberano, é quase o Rei Sol e, portanto, há uma superioridade moral que o inspira, que o alimenta.
É justamente nesse ponto que ele precisa de filósofos! Há uma corrente filosófica russa muito importante chamada corrente eslavófila, isto é, que se refere a uma esfera ética, política e ética estritamente eslava, e que se opõe a outra corrente filosófica, que era a corrente dos ocidentalistas que consideravam que, pelo contrário, a Rússia tinha que se aproximar das normas jurídicas e políticas do Ocidente. E aí Putin cita filósofos como Konstantin Leontiev, um filósofo do final do século XIX, que explica que, de facto, existe uma diferença ética, uma diferença moral entre russos e ocidentais, e esta diferença é na verdade uma superioridade. Acredito que para Putin isto se expressa de uma forma muito simples e muito clara. Para ele, o homem russo é, em última análise, capaz de renunciar ao seu conforto pela pátria, para salvar a pátria. Para Vladimir Putin, cito-o no meu livro, o homem ocidental busca primeiro o sucesso material, colocado como desígnio anterior ao sucesso espiritual. Ao contrário, para Putin, o homem russo é capaz – lute contra Napoleão, Hitler ou qualquer outra ameaça – de sacrificar o seu conforto e até a sua vida em nome de um ideal, que é, antes de tudo o mais, um ideal patriótico, embora também religioso em alguma medida, e que não é senão o ideal de autossacrifício por um Bem maior, uma ideia mais elevada que naturalmente significa Pátria.
Subjaz no seu pensamento, em resumo, a ideia de uma superioridade moral do homem russo.
Sim, o homem russo traduz a ética levada ao extremo, que é o autossacrifício. E é por isso que ele está convencido de que, do ponto de vista antropológico, os russos não podem perder. Portanto, há uma forma de maximalismo moral em Putin, que ele extrai dos pensadores eslavófilos dos séculos XIX e XX, para dizer que de facto há uma superioridade natural do homem russo, que é também cultural.
E quanto às influências de pensamento que foi buscar a Ilyin?
Ivan Ilyin é um defensor de Hegel. Hegel é muito importante na Rússia, e foi-o especialmente no século XX, porque o marxismo-leninismo foi inspirado em Hegel, isto é, numa ideia e num sentido da História. Que o sentido da História augura o advento do comunismo e que é preciso haver momentos negativos para alcançar o positivo. Por isso, às vezes é necessário sacrificar certos indivíduos ou certas camadas da população para alcançar a encarnação do Espírito na História, isto é, no sentido da História. Ilyin foi um grande especialista em Hegel, sublinhando esta ideia de que uma nação é um corpo vivo, não apenas um conjunto de regras jurídicas, fronteiras delimitadas – e este corpo deve respirar! Assim, as suas fronteiras precisam de respirar à medida que um corpo se torna maior ou menor. Mais: este corpo tem uma cabeça, é Vladimir Putin. Para Putin, o corpo russo é um corpo jovem e em boa saúde. Ao contrário, há corpos velhos, há a velha Europa que é uma velha senhora, que só pensa nas suas regras. Há o corpo americano, que é um corpo agressivo. E depois há o corpo russo, que é vigoroso, um corpo com uma missão, assumir o lugar que ele merece na história contemporânea.
O conceito de missão leva-nos a um outro, o de messianismo. É aí que entra um outro pensador, Berdyaev.
Sim, volto a insistir, é a ideia de que o povo russo, o homem russo acredita possuir uma missão. Uma missão que é meta-histórica, uma missão mística para salvar a Humanidade. E é isso que Putin faz em 2013, dizendo que não devemos defender as minorias homossexuais, não devemos defender o casamento homossexual, que devemos absolutamente lutar contra a laicização e a secularização, que, sobretudo, não devemos esquecer a Pátria. Quando Putin diz isto, Putin está alinhado com a ideia de que a Rússia vai salvar o mundo da sua decadência e degradação. Trata-se, no fundo, e também, de uma grande batalha espiritual da história do mundo.
E quanto a um sentimento de ressentimento? Há ressentimentos em Putin, como os apresenta, por exemplo, Marc Ferro no seu livro “Os Ressentimentos na História”?
Psicológica e politicamente, acho que Putin é movido pelo ressentimento, que é complexo. Primeiro, é um ressentimento contra o desaparecimento da União Soviética, que ele disse ter sido a maior tragédia do século XX. Vejamos, em Dresden, em 1989, no momento da queda do Muro de Berlim, ele sentiu-se ameaçado pela multidão, portanto, experimentou uma sensação de medo face ao caos. E desde logo Putin assacou as culpas desse processo ao Ocidente. Tal como viria a acontecer em acontecimentos posteriores. Em maio de 1999, as forças da NATO bombardeiam Belgrado, uma intervenção que não tinha sido validada pela ONU nem pelas Nações Unidas. Para Vladimir Putin, esta intervenção americana foi vista como uma violação do direito internacional. Na mente de Putin, estas são operações especiais dos serviços americanos e não traduzem a vontade dos povos. Hoje, para Putin, é impensável que os ucranianos prefiram virar-se para a Europa do que para o irmão mais velho, Moscovo. Por isso que ele lançou a sua guerra: crê que os ucranianos, no fundo, não gostam dos seus líderes. E por isso iriam receber o Exército russo como um libertador. A nível interno, a questão do ressentimento é também uma arma nas suas mãos na medida em que todos os dias a comunicação social russa pinta o Ocidente como a raiz de todos os males que os russos sofrem.
E acha que este ressentimento pode levá-lo a ser capaz de uma ofensiva nuclear devastadora?
Creio que Putin não quer uma guerra nuclear, que seria obviamente uma guerra tão autodestrutiva quanto destrutiva. Acho que ele é alguém que ama muito o poder e o dinheiro. Então acredito que Putin pensa primeiro na sua vida e nas pessoas próximas a ele. Mas, ao mesmo tempo, é levado pela sua própria lógica política. Vladimir Putin não pode imaginar perder, até porque é a sua sobrevivência política que está em jogo, pelo que há riscos de consequências incontroláveis desta guerra.
Para terminar, do outro lado da barricada temos Zelensky. Que leitura faz deste homem?
Zelensky é alguém que fez campanha eleitoral em forma de uma série de televisão. Então ele é um ator de uma comunicação que tem funcionado muito bem. Ele é alguém que queria, digamos, desencravar um pouco a Ucrânia quando chegou ao poder. Acredito que foi surpreendido pela dimensão do ataque russo. Mas é alguém que teve a força moral de não deixar a Ucrânia, de não se exilar. E assim ele é alguém que fez o que Putin atribui aos russos, isto é, estar pronto para sacrificar a vida pela sua pátria. Acredito que de um bom actor ele veio a tornar-se num líder político que encarna a força da resistência do seu país.
Fotografia: Manon Jalibert
Este artigo foi publicado na edição de outono da revista Líder. Subscreva a Líder AQUI.



