O ataque perpetrado pelo Hamas contra Israel, em 7 de outubro, não partilha com a Guerra do Yom Kippur apenas a data. Agora como há 50 anos, os serviços de inteligência e responsáveis israelitas subestimaram os riscos de ataque. Em 1973, a soberba e a hiper-autoconfiança do bem-sucedido e aclamado General Eli Zeira conduziram-no a negligenciar os inúmeros sinais de que o país poderia ser invadido pelos vizinhos.
À época, surgiram vários e claros indícios de movimentações militares egípcias de grande envergadura. Segundo um antigo oficial da CIA norte-americana, o rei da Jordânia terá dado conta à primeira-ministra Golda Meir, numa reunião secreta em Telavive, que uma guerra poderia estar a ser preparada. Eli Zeira manteve-se firme na sua tese de que o Egipto não dispunha de arsenal para derrotar Israel. E mostrou-se indisponível para despender tempo em longos debates, que rotulava de “conversas da treta”. Humilhou oficiais. Detestava expressões de discordância. Um dos seus subordinados, baseado em relatórios sobre movimentações das tropas egípcias, pediu para mobilizar reservistas que analisassem a situação. Logo recebeu um telefonema de Zeira avisando-o de que a missão dos serviços de inteligência era proteger os nervos do país – não era deixar doidos os cidadãos.
Mesmo perante sinais de novas movimentações militares nas fronteiras de Israel, não apenas com o Egito, mas também com a Síria, Eli Zeira manteve-se firme e persuadiu outros responsáveis no mesmo sentido: nem a Síria nem o Egito teriam condições para atacar Israel. Nem o facto de os serviços de inteligência terem tomado conhecimento de que a União Soviética estava a preparar viagens áreas de emergência para retirar os seus conselheiros do Egito e da Síria foi suficiente para reinterpretar a realidade. As múltiplas informações sobre movimentações de tropas inimigas preocupavam seriamente o Ministro da Defesa, herói da Guerra dos Seis Dias, Moshe Dayan. Mas Zeira, convicto, tinha outras explicações para tais movimentações: eram, do seu ponto de vista, apenas preparativos para responder a um eventual ataque de Israel.
Acresce que se aproximava o Yom Kippur, o Dia do Perdão, uma das datas mais importantes do judaísmo. Arregimentar reservistas, nessa época, que estivessem preparados para responder a um eventual ataque dos vizinhos geraria fortes críticas. Em reunião com a primeira-ministra, Zeira manteve-se, pois, firme: as preocupações não eram razoáveis. Mas a realidade sobrepôs-se à convicção e ao pensamento firme do reputado, ainda que soberbo, general. A tragédia aconteceu: em 6 de outubro de 1973 começou a guerra do Yom Kippur.
As lições não foram aprendidas. Cinco décadas depois, a história repete-se. Há evidência de que oficiais israelitas foram informados de que o Hamas se preparava para atacar Israel. Michael Milstein, antigo militar dos serviços de inteligência e conselheiro do governo para assuntos da Palestina, terá avisado que a abordagem de Israel ao Hamas não estava a ser eficaz. Do seu ponto de vista, era óbvio que “o Hamas estava a pregar a guerra”. Mesmo avisos do Combat Intelligence Corps (“os olhos do Exército” que monitorizam a fronteira e facultam informação em tempo real às tropas no terreno) foram ignorados. Uma soldada disse aos seus superiores que militantes do Hamas estavam a praticar repetidamente ataques numa cerca falsa. Mas, segundo afirmou numa entrevista à TV, todos essas movimentações eram tomadas como normais, rotineiras e não representavam qualquer perigo. Em suma, e fazendo fé nos relatos do The Times of Israel, os sinais eram múltiplos – mas foram ignorados ou subestimados.
Quem não aprende com a história está condenado a repeti-la. O que ocorreu com Israel e as suas lideranças não é inédito – aí e noutros contextos, incluindo os empresariais. São vários os pecados capitais deste tipo de tragédias: a soberba, o excesso de autoconfiança, a subestimação dos perigos, a normalização do desvio, a tendência para matar o mensageiro da má notícia, a incapacidade para compreender que a humilhação constante dos mais fracos alimenta ressentimentos que se transformam em barril de pólvora.
Do que necessitamos, pois, é de lideranças corajosas e tenazes, mas também humildes, capazes de escutar e respeitar a discordância. De sistemas de governança dotados de freios e contrapesos que restrinjam o poder de lideranças soberbas. De cautela permanente para que o desvio se não transforme na norma e, mais dia menos dia, resulte em tragédia. Como liderados e cidadãos, a todos cabe a responsabilidade de aprender com a história e evitar deslumbramentos com lideranças perigosamente salvíficas que detestam limites ao seu poder.
P.S. A atuação de Eli Zeira está descrita no capítulo 5 do livro Liderança – Humildade e Soberba, do qual foram extraídos pequenos excertos