As democracias-liberais trouxeram o período de maior prosperidade material e respeito pelos direitos humanos de que há memória na história da humanidade. Mas ao contrário do que chegou a ser previsto, o fim da história não chegou e a democracia-liberal está sempre em risco de vir a ser tomada por forças totalitárias à direita e à esquerda. Neste texto irei falar de alguns fatores que, juntos, podem constituir a receita para o regresso de visões totalitárias ao mundo desenvolvido.
A falta de memória
Em breve irão desaparecer todas as pessoas que eram vivas durante o regime nazi e que assistiram às suas atrocidades. Na europa ocidental poucos viveram os regimes comunistas e mesmo na Europa de Leste uma boa parte da população já nasceu a tempo de não sentir o peso desses regimes. A memória do totalitarismo está a passar da cabeça das pessoas que sofreram sob esses regimes para os livros de história dos seus netos. Por muito interessante que a história seja, umas linhas nuns livros de história dificilmente terão o mesmo efeito dissuasor que a memória presente das dificuldades passadas.
A falta de memória traz muitos riscos. O primeiro é o de subvalorização dos acontecimentos do passado. Com o tempo, o sofrimento torna-se mais distante e começa a ser possível montar outras narrativas: “o problema não foi a ideologia, mas quem implementou”, “as ideias eram boas, mas os líderes incapazes” ou “não foi assim tão mau como se conta”. Torna-se também mais fácil, sem testemunhas vivas para contradizer, entrar em teorias negacionistas, rejeitando aquilo que aconteceu.
Abre-se assim a porta a que essas ideologias destrutivas apareçam com novas roupagens, aplicando truques de cosmética que façam desaparecer os sinais de ligação ao passado, mas com exatamente os mesmos objetivos, métodos e pensamento que os regimes totalitários do passado.
Com essa nova roupagem e uma memória perdida daquilo que foram os regimes totalitários do passado, torna-se mais fácil repeti-los. Até porque há um motivo para esses regimes totalitários terem acontecido e terem cometido os crimes que cometeram: são vendidos como ideias muito atrativas, especialmente em períodos de crise. Construir uma grande nação assente num qualquer desígnio moral ou religioso, atingir a igualdade entre os homens na prosperidade parecem sempre desígnios com tal superioridade moral que todos os meios podem justificar atingir esses fins.
Mesmo que no passado construir uma grande nação tenha sempre acabado em massacrar as minorias dessa mesma nação, mesmo que os objetivos de igualdade na prosperidade tenham sempre acabado com uma maioria na miséria e uma pequena elite próspera no topo, estas ideias acabam sempre por ser atrativas quando aparecem com novas roupagens.
Estagnação económica
Estas ideias tornam-se ainda mais atrativas quando um país ou uma área económica está em estagnação permanente.
Alguns dos que estão a ler este texto lembram-se do que é viver num país em crescimento. Viver num país economicamente saudável em que as pessoas sabem que podem progredir na vida se trabalharem e investirem, em que pais sabem que os filhos terão uma vida melhor do que a deles e que eles próprios já tiveram uma vida melhor do que os seus pais. Independentemente do ponto de partida, uma fase de crescimento traz sempre um ânimo diferente à vida das pessoas e uma dinâmica diferente à vida política. Quando o país cresce e as oportunidades de crescimento estão disponíveis para todos, existe uma vontade de colaboração e interação maior. As pessoas que ascendem são vistas com mais admiração do que inveja (embora esta esteja sempre lá, faz parte da natureza humana). O país consegue reter talento porque este sabe que pode crescer profissionalmente e ascender socialmente sem sair do país.
Pelo contrário, a estagnação retira possibilidades de ascensão social que alimenta a vontade de trabalhar, investir e integrar-se. Num cenário deste tipo, em que o bolo disponível não aumenta, as pessoas sentem que a única maneira de terem uma fatia maior é alguém ter uma fatia mais pequena. Os instintos de colaboração, normais na natureza humana, são substituídos pela inveja. Quando o bolo não muda de tamanho, qualquer pessoa que consiga, mesmo que pelo seu mérito e trabalho, uma fatia maior, é imediatamente olhada com desconfiança. Em vez de progredir socialmente, regride.
A estagnação também leva a que algumas das melhores mentes do país decidam tentar a sua sorte noutro lado, esvaziando a economia de talento e a política de pessoas capazes e entender as complexidades e nuances necessárias para estabelecer consensos.
Bolhas de informação
Quem ainda teve a oportunidade de viver no período antes da Internet, lembra-se das expectativas que foram criadas com o seu aparecimento, especialmente os benefícios para a discussão pública e mesmo para a democracia. O acesso a enormes quantidades de informação só poderia melhorar a discussão pública, afinal de contas teríamos mais dados para discutir e mais diversidade de opiniões para comparar.
Estando todas as premissas certas, houve outras duas premissas que foram esquecidas nesta previsão. A primeira é de que a capacidade de processamento de informação dos seres humanos não se alterou. Podemos ter acesso a muito mais informação, mas não conseguimos ler e interpretar toda a informação. O nosso cérebro manteve-se inalterado e até mais sujeito a distrações. Mais coisa menos coisa, continuamos a ler tanto como líamos antes, mesmo que agora seja menos livros e jornais e mais posts de Facebook, mensagens de Whatsapp ou imagens do Instagram.
A segunda premissa que falhou é que o ser humano, podendo escolher, prefere informação que confirma as suas convicções. Tendo mais por onde escolher, tenderá a escolher mais vezes a informação mais próxima das suas convicções. Estas duas realidades juntas tiveram um efeito nefasto no acesso a informação e na formação de opinião. Com tanta abundância de informação, mas com a nossa capacidade de a processar inalterada e a nossa preferência por acedermos a informação que confirme aquilo em que já acreditamos, muitos acabam a consumir menos variedade de informação do que antes. Até podem consumir mais informação, mas acabam por aceder a informação menos variada.
Na minha infância existia o Jornal do Incrível em que pessoas que queriam muito acreditar em histórias do além podiam encontrar “notícias” que justificavam as suas crenças. Mas o jornal lia-se rapidamente e qualquer pessoa que o comprasse acabaria também por ser exposto a outras visões menos esotéricas do Mundo. Hoje essa pessoa pode passar o dia todo a ler apenas essas histórias que só apareciam no Jornal do Incrível e construir a sua visão do Mundo em torno daquilo que lê.
Como a informação é tanta e tão variada, não importa o quão deslocada ou falsa é uma posição sobre determinado assunto que quem deseja muito acreditar nessa posição encontrará sempre muitas fontes que a confirmem ou pareçam confirmar. Se não encontrar, pode ele próprio produzi-las.
Pior do que isso, com o emergir das redes sociais e respetivas bolhas de “amigos”, é possível alguém viver de forma permanente num mundo alternativo em que qualquer teoria por mais absurda que seja pode passar por verdade porque há sempre umas dezenas de pessoas disponíveis para concordar e umas centenas de artigos a confirmar essa versão. Por muito falsa que uma teoria seja, estando milhões de pessoas em contacto, será sempre possível construir um mundo virtual de dezenas, centenas ou mesmo milhares de pessoas que acreditam no mesmo, partilham informação confirmatória, formando uma bolha que os protege de outras pessoas e informações que contrariem as suas crenças.
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Por Carlos Guimarães Pinto, Fundador da Iniciativa Liberal