A democracia liberal é, por definição, repleta de tensões, hesitações, contendas e divergências. A separação de poderes, constitucionalmente garantida, e a acomodação de interesses e ideias diferentes podem delongar o processo decisório. Mas é a síntese permanente dessas “impermanências” que, sob o primado da lei, aumenta as probabilidades de serem tomadas decisões políticas em prol do bem comum. Queixemo-nos das imperfeições da democracia – mas consciencializemo-nos do célebre aforismo de Churchill: “a democracia é o pior dos regimes, à exceção de todos os outros”. A democracia é um bem inestimável que, como a saúde, se valoriza sobretudo quando não se tem. E, não sendo ela um dado adquirido, é imperativo defendê-la e protegê-la continuamente – sobretudo porque os seus detratores alimentam-se dos seus alicerces para miná-la.
Importa reconhecer que vários regimes democráticos têm defraudado as legítimas expectativas dos cidadãos. Os frutos do progresso não têm sido distribuídos de modo justo. As desigualdades crescentes têm avolumado o desconsolo. O desprezo votado aos pobres e “descamisados” tem alimentado revoltas – e colocado muitos deles nos braços de oportunistas populistas que prometem resgatar-lhes a dignidade perdida. A corrupção é um perigo real. Muitos líderes, políticos e empresariais, vivem numa bolha que os impede de tomar contacto com a realidade das pessoas comuns. As nossas economias têm acolhido, objetivamente, investimentos e poupanças de cleptocratas que colocam a salvo o dinheiro que os seus regimes autocráticos não protegem. A coberto das liberdades democráticas, líderes autocratas e cleptocratas, como o russo, instigam guerras de (des)informação para corromper as democracias e, desse modo, escaparem ao contágio democrático que, a ocorrer, lhes “cortaria a cabeça”. Se este caminho não for atalhado, os perigos de deterioração das democracias são reais. Daí a pergunta: que antídotos podem ser aplicados?
Anne Applebaum, num soberbo livro intitulado Autocracy, Inc. – The dictators who want to run the world, ajuda a encontrar a resposta. Segundo esta reputada jornalista e historiadora, com dupla nacionalidade, norte-americana e polaca (é casada com Radosław Sikorski, atual Ministro dos Negócios Estrangeiros da Polónia), “as autocracias querem criar um sistema global que beneficie ladrões, criminosos, ditadores e perpetradores de assassinatos em massa”. Mas, defende ela, podemos travar esses ímpetos através de quatro antídotos.
- Importa pôr fim à cleptocracia transnacional. Esta alimenta-se da possibilidade legal de oligarcas e cleptocratas aplicarem as suas fortunas em economias ocidentais atrativas, por vezes sem necessidade de revelarem a sua identidade às autoridades fiscais. É necessário instituir mecanismos de transparência e não tolerar a corrupção. É igualmente crucial que os regimes democráticos impeçam os seus cidadãos de colocarem o dinheiro em jurisdições que promovem o secretismo.
- Não basta lutar contra as guerras de (des)informação e as teorias da conspiração veiculadoras de narrativas que visam legitimar interesses de regimes políticos perversos. É, sobretudo, necessário impedir essas narrativas, antes que se disseminem. Essa prevenção pode ser levada a cabo através de processos como o pre-bunking, a instituição de mecanismos de transparência, e o reforço de credíveis agências de informação como a Reuters e a Associated Press – de modo a mitigar o poder de agências como a chinesa Xinhua ou a russa RT.
- É necessário desacoplar as economias dos regimes democráticos das economias dominadas por autocratas e oligarcas. O desenvolvimento de relações comerciais como instrumento facilitador da paz internacional, da harmonia entre povos e da democratização das sociedades revelou-se um fiasco. Veja-se no que resultou a dependência europeia do gás russo! Segundo Applebaum, “os riscos de dependência do comércio com a Rússia, a China e outras autocracias não são apenas económicos. São também existenciais”.
- É imperioso que as democracias se unam. Segundo Applebaum, “os cidadãos dos EUA e das democracias da Europa, Ásia, África e América Latina devem começar a consciencializar-se de que estão ligados entre si e com os cidadãos que, nas autocracias, perfilham os valores democráticos. Eles necessitam uns dos outros, agora mais do que nunca, pois as suas democracias não estão seguras. Nenhuma democracia está segura”.
A implementação destes antídotos é um desafio gigantesco. Muitos obstáculos são criados por interesses instalados nas sociedades democráticas. Nutridas pela ganância, o desprezo pela dignidade humana, ou a mera pulsão autocrática, não faltarão vozes empenhadas em veicular narrativas que melhor servem os seus interesses – em detrimento do bem-comum. Cabe-nos a responsabilidade de, quotidianamente, prezar valores como o respeito pela diferença e a liberdade de expressão; combater a pós-verdade; desmascarar populistas oportunistas que até ao nome de Deus recorrem para moralizar o ódio. Acima de tudo, é nossa responsabilidade zelar, de alma e coração, pelos quadros institucionais que garantem a separação de poderes e os mecanismos impeditivos de derivas autocráticas.