É comum dizer-se que não podemos decidir por quem nos apaixonamos, por quem sentimos atração, ou quais as nossas orientações eróticas e/ou afetivas. E, claro, é verdade que não temos capacidade, nem sistema, para decidir os nossos sentimentos – senão, ninguém se sentiria mal, ninguém teria depressões (mas talvez nos aproximássemos de uma distopia desagradável por causa disso mesmo, como mostra a ficção científica, desde o Admirável Mundo Novo até ao Equilibrium).
Mas as relações não são feitas de atração ou de orientações – elas começam aí. As relações são feitas de decisões – decidir falar com outra pessoa, decidir passar mais tempo com ela, decidir alimentar esses sentimentos ou, até, decidir combater sentimentos negativos com o ciúme.
Às vezes é comum pensar-se em certo tipo de relações (a que normalmente se chama ‘não-monogamias consensuais’, NMCs, embora eu tenha algumas reservas em relação a esse termo) como sendo para pessoas ‘indecisas’, que não ‘sabem escolher’, que têm ‘medo do compromisso’. A investigação já provou conclusivamente que esse tipo de crenças é apenas uma forma de estereótipo e discriminação.
Porém, uma pergunta se levanta, para mim. Por que é que (quase) nunca ouvimos falar de monogamia consensual? Ou seja: por que é que se pressupõe que a monogamia é tão obviamente consensual que tal termo não precisa de ser nomeado, ao passo que o oposto acontece na não-monogamia? (Bem, a resposta direta é simples: a monogamia é hegemónica na nossa sociedade, e desde há séculos, mas está longe de ser comum.)
E quando pergunto a audiências quantas pessoas é que escolheram explicitamente estar numa relação monogâmica, poucas são as que levantam o braço.
Isso quer dizer que boa parte das pessoas não decide estar numa relação assumidamente monogâmica mas, ao invés disso, simplesmente assumem a relação em que estão como sendo monogâmica.
Assumem que «estamos a namorar» tem lá dentro, invisível, mas omnipresente, a palavra ‘exclusivamente’.
Isso quer dizer que muitas pessoas, todos os dias, estão a prescindir de decidir como organizar as suas relações, a deixar a tradição, as suas crenças ou apenas uma espécie de ideia sobre o que é ‘normal’ ou ‘esperado’ controlar as suas vidas e, portanto, a potencialmente impedir essas mesmas pessoas de viver uma vida mais plena, e mais de acordo com as suas orientações, gostos e desejos.
Isso não quer dizer que existem tipos de relações que são melhores do que outras (mesmo que existam, já, discussões académicas sobre se a monogamia é sequer moralmente permissível). Quer só dizer que uma vida vivida em plenitude e consciência é uma vida onde tomar decisões é algo a prezar, não a evitar.
Seguir a tradição – ou seja, não ter consciência das decisões que poderíamos estar a tomar, mas não tomamos – é uma forma de perder autonomia e, ao mesmo tempo, estarmos sob a ilusão de que não a perdemos. Essa ilusão vem precisamente da ausência de noção – se eu acho que a monogamia é a única forma ‘verdadeira’ de me relacionar, então é como se não existisse nenhuma escolha a fazer, e quaisquer outras possibilidades são tomadas como inválidas, inferiores ou até doentias à partida.
Qual é a alternativa, então?
Mudar toda a gente para relações não-monogâmicas? Claro que não! O problema seria o mesmo: se a não-monogamia fosse a única possibilidade ‘real’, ou se fosse de alguma forma ‘superior’, então deixaria de haver consciência de uma escolha real, importante, necessária.
Ao invés disso, é importante pensar no que é a base de qualquer decisão. Para citar um famoso filme, Choice. The problem is choice. Tomar decisões implica necessariamente tomar consciência das escolhas que podemos fazer, das alternativas que, realisticamente, existem perante nós, bem como das consequências associadas a cada uma das escolhas (sempre dentro das nossas limitações cognitivas, e da nossa falta de uma bola de cristal!) e, parte importante, uma capacidade de compreender a razão ou motivação por detrás de cada escolha possível, de cada decisão tomada.
É por isso que existem ‘ferramentas’ para nos ajudar a ultrapassar as nossas próprias limitações cognitivas e experienciais – coisas como o Relationship Anarchy Smorgasbord. Este tipo de ferramentas não nos diz como fazer as nossas relações – ao invés disso, tal como o menu de um restaurante, mostram-nos as categorias sobre as quais podemos tomar uma decisão, e quais os ingredientes que entram em cada decisão. Ou seja: as escolhas possíveis.
Claro, no fim de contas as relações são relacionais. Não tomamos decisões sobre relações em isolamento. E é por isso que quanto mais pessoas tivermos ao nosso redor capazes de tomar decisões – conscientes das suas escolhas – mais poder de decidir teremos nós também, mesmo que seja decidir continuar a fazer o que sempre fizemos, ou mudar as nossas decisões radicalmente.
Este artigo foi publicado na edição nº 31 da revista Líder, cujo tema é ‘Decidir’. Subscreva a Revista Líder aqui.

