Os anos 90 foram os anos em que o empreendedorismo se afirmou como o motor principal de crescimento das Economias modernas, primeiro nos EUA com o impulso dado no Silicon Valley, e depois num movimento que se estendeu à Europa e a todo o Mundo. Mas nos anos 2000 nasceu a consciência clara de que o progresso da sociedade não poderia depender só da criação de novas empresas e mercados, mas teria de mobilizar a criatividade, talento e ação dos cidadãos que, preocupados com os problemas sociais e ambientais que viam à sua volta, se tornavam empreendedores sociais e alimentavam o progresso da sociedade com soluções inovadoras para problemas negligenciados. Algumas dessas soluções tornavam-se depois modelos comunitários sólidos, negócios sociais estabelecidos, plataformas abertas ou novas políticas públicas.
Em 2009 eu, na altura Professor de Empreendedorismo no INSEAD, e um grupo visionário de inovadores sociais portugueses, decidimos aprofundar este tema em Portugal, tendo criado o IES – Instituto de Empreendedorismo Social – a primeira Social Business School do Mundo, em parceria com o INSEAD e replicando em Portugal o ISEP – programa de liderança do INSEAD em Empreendedorismo Social. O IES, com esta rede de líderes, lançou nos anos seguintes em Portugal programas marcantes e únicos no Mundo como o MIES – Mapa da Inovação e Empreendedorismo Social e o Laboratório de Investimento Social, inspiração para a criação posterior da iniciativa pública Portugal Inovação Social. Um desses programas marcantes foi o desenvolvimento dos Bootcamps de Empreendedorismo Social – 24 horas intensas de formação ao longo de dois dias para grupos de 24-36 participantes para desenvolver novas soluções que melhorassem o Mundo. O bootcamp foi um programa de enorme sucesso, tendo-se realizado mais de uma centena de edições que chegaram a milhares de participantes. A formação era dinâmica e inovadora, sistematizando o processo de empreendedorismo social em 10 passos muito concretos, com ferramentas claras, que ajudavam os empreendedores sociais a refletir, estruturar e passar à ação.
A equipa do IES sentiu depois necessidade de codificar todo o processo do bootcamp num manual que melhorasse a qualidade de cada nova edição do bootcamp e o processo de replicação. E houve depois a vontade de disseminar a abordagem do bootcamp, dando o manual ao Mundo para que qualquer pessoa pudesse seguir os passos e aprofundar a prática de empreendedorismo social. Com o apoio da Fundação Gulbenkian, esse primeiro manual criado há exatamente 10 anos, foi publicado em 2013 como Manual para Transformar o Mundo, o primeiro guia prático para empreendedores sociais. Dado o sucesso da 1.ª edição, lançámos em 2016 a 2.ª edição em versão Portuguesa e Inglesa, ambas esgotadas nos anos seguintes. Atualmente, os manuais estão disponíveis gratuitamente no site do IES – https://www.ies-sbs.org/pt/conhecimento/.
No Manual para Transformar o Mundo, estes foram os dez passos codificados do processo de empreendedorismo social:
CAPÍTULO 1. EMPREENDEDOR: perceber a motivação e posicionamento do(a) empreendedor social
CAPÍTULO 2. PROBLEMA: dar uma ferramenta para encontrar e analisar os problemas mais importantes e negligenciados da sociedade
CAPÍTULO 3. VALOR: conceber a proposta de valor a ser oferecida aos principais destinatários
CAPÍTULO 4. SOLUÇÃO: desenhar a solução concreta que entrega essa proposta de valor, com as diferentes atividades e parcerias
CAPÍTULO 5. SUSTENTABILIDADE: explorar a forma como a geração de receitas e a poupança de custos torna a solução economicamente viável
CAPÍTULO 6. IMPACTO: medir e reportar o impacto gerado em termos da criação de valor para a sociedade
CAPÍTULO 7. INTEGRAÇÃO: sistematizar as aprendizagens num plano de ação concreto
CAPÍTULO 8. PILOTO: perceber como validar a solução em pequena escala de forma exequível
CAPÍTULO 9. VIABILIZAÇÃO: saber como mobilizar os recursos necessários para tornar a solução uma realidade
CAPÍTULO 10. COMUNICAÇÃO: saber fazer um pitch memorável e credível da solução para entusiasmar parceiros e financiadores
Esta estrutura, passo a passo, e as ferramentas de análise associadas a cada um deles, dava aos empreendedores sociais uma confiança acrescida para sistematizar os seus projetos e os fazer avançar através da ação empreendedora.
Dez anos passaram e se hoje eu e os meus coautores (João Cotter Salvado, Carlos Azevedo e Isabel Lopo de Carvalho) fossemos publicar a 3.ª edição do Manual para Transformar o Mundo, o que melhoraríamos?
De facto muitas coisas, pois felizmente o ecossistema e a prática de inovação e empreendedorismo social avançaram muito nos últimos anos, em Portugal e no Mundo.
Assim seria fundamental aprofundar os seguintes temas:
- Processos de Experimentação: Desenvolver processos de formulação e validação de hipóteses e aprendizagem no terreno, mesmo durante a fase de desenvolvimento conceptual. Ou seja, orientar a ação do empreendedor social para a abordagem do Lean Entrepreneurship, em que o protótipo ou piloto se desenvolvem nas fases iniciais do processo do empreendimento numa lógica de aprendizagem iterativa em ciclos rápidos.
- Perspetiva Sistémica: Embeber no processo de empreendedorismo social ferramentas que permitam uma análise do contexto mais amplo em que o problema social se insere (como por exemplo stakeholder analysis e mapeamento sistémico durante a fase de análise do problema), de forma a que a inovação social mais cedo se torne fonte de mudança.
- Inovação no Modelo de Negócio: Aprofundar a modelação do negócio social, potenciando as diferentes formas de gerar receitas de entre as tipologias existentes no terreno, para dar aos empreendedores sociais um menu mais claro de opções que podem selecionar ou recombinar. Olhar também para o papel da tecnologia e dos modelos digitais, incluindo as plataformas abertas que são altamente escaláveis se bem desenhadas.
- Estratégia de Parcerias: Aprofundar os modelos e oportunidades para parcerias estratégicas com ferramentas de identificação e alinhamento com parceiros-chave, sendo que atualmente praticamente todos os projetos envolvem modelos de parceria, muitas vezes intersetoriais com empresas ou entidades públicas.
- Medição e Monitorização de Impacto: Complementar a teoria da mudança com um modelo de níveis de evidência de impacto disponíveis para definir passos concretos de avaliação de potencial de impacto, de acordo com o ponto de partida da iniciativa. Desenvolver também de forma mais clara o processo de alinhamento com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), os quais só apareceram a partir de 2015, mas que se estão a assumir como um referencial de alinhamento para o impacto.
E terminaríamos o novo manual salientando um ponto que estava presente no manual anterior, mas que se deve sempre reforçar. Se queremos um sistema económico mais sustentável e circular, e uma sociedade mais inclusiva e próspera, não podemos confiar apenas no papel dos Mercados e dos Governos. Temos de dinamizar essa grande força que é a energia mobilizadora e criadora dos cidadãos, os quais, estando próximos dos problemas e inseridos nas comunidades, desenvolvem soluções altamente inovadoras e criativas para problemas sociais negligenciados que os Governos não se apercebem e os Mercados falham em resolver.
Essa é a força e essência do movimento de inovação e empreendedorismo social, e a importância de ter um ecossistema de apoio e financiamento aos empreendedores sociais. Esta é uma área em que atualmente Portugal dá cartas na Europa e é considerado um caso de sucesso. Há que continuar o trabalho de dinamizar a inovação social em prol do progresso contínuo da sociedade para mais inclusão social e sustentabilidade ambiental.
Este artigo foi publicado na edição de primavera da revista Líder
Subscreva a Líder AQUI.