A sustentabilidade parece estar a sair de moda, não só em alguns dos Governos mais influentes do mundo, mas também no mundo corporativo. Apenas 25% das empresas do índice S&P 100 utilizaram o termo ESG (Environmental, Social & Governance) no título do seu relatório de sustentabilidade em 2024, um valor que caiu para apenas 6% em 2025. Ainda assim, há quem veja esta tendência como uma evolução natural e passo meramente transitório – sem fatalismos à mistura.
É o que defende Armando Rocha, Professor na Escola de Lisboa da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, que encara estas flutuações com normalidade. O problema, explica, é mais sistémico do que político.
O académico tem publicado e desenvolvido investigação nas áreas do Direito do Mar, do Ambiente e Alterações Climáticas, do Direito Internacional Público e dos Direitos Humanos. É ainda National Rapporteur e Europe Regional Leader no Sabin Center for Climate Change Law at Columbia University.
Em conversa com a Líder, durante a terceira edição do evento The Lisbon Climate Conference, no dia 24 de outubro, o Professor dissecou o que realmente está em jogo com as flutuações na adoção de normas ESG e o que deve mudar na Lei.
A sustentabilidade tem perdido relevância nos Governos e, nas empresas, políticas de ESG têm caído. O que lhe parece esta evolução? Para que mundo estamos a caminhar?
Parece-me que é uma evolução previsível e não o digo sequer com pessimismo. Acho que era algo expectável e precisamos de olhar também para a questão sob uma perspetiva ampla e a longo prazo. Digo isto porque houve um período de enorme otimismo e até ingenuidade. Por alguma razão achou-se que ia haver grandes alterações no âmbito de políticas de sustentabilidade do Estado e por parte das empresas.
Quando olhava para estas medidas, no aspeto mais científico, percebi a flutuação que ia havendo na terminologia e metodologias. Pareceu-me desde cedo que havia muita boa vontade, muita ingenuidade e alguma dificuldade em domesticar o objeto. Dificuldade em ter uma política de sustentabilidade coerente, sólida, baseada em factos e na ciência.
Por isso, estas nuances no processo são previsíveis. Podem estar, a curto prazo, a ser aceleradas por uma orientação ideológica política específica, mas esse não é o único fator e, a longo prazo, não é necessariamente uma má notícia.
Creio que são processos de ajuste normal, de um movimento que cresceu muito sem ter uma base totalmente sólida, e agora estamos a reajustar-nos. Mas o reajuste não é negação, é apenas uma transformação que permitirá no futuro haver outro tipo de solidez e até evolução.
Acredito que, mesmo que não tivesse havido uma mudança de governo nos Estados Unidos, iríamos assistir a este mesmo movimento.
Que importância têm ou deveriam ter estas questões nas empresas? Se não pela responsabilidade, para não serem alvo de ações de litigação?
É uma forma de encarar o problema. Acho que a fonte de uma obrigação vinculativa de uma empresa ou sociedade comercial não advém necessariamente da sua responsabilidade social. Só é possível haver uma responsabilização efetiva se a empresa estiver fundada num instrumento normativo, seja uma lei ou um tratado de um coletivo, mas tem de ser um documento que seja de facto normativo.
Portanto, os meios de responsabilidade social da empresa, instrumentos de ESG, mecanismos de reporte de sustentabilidade, todo este tipo de instrumentos que temos à nossa frente, são uma forma que as empresas têm de se defenderem. De demonstrarem perante um processo judicial que estão a fazer um caminho e que por isso estão a ajustar o seu comportamento, a uma obrigação que existe nos termos da lei ou daquele instrumento jurídico que lhes seja vinculativo.
Não posso concordar com a ideia de que, pelo facto de haver um retrocesso nalgumas medidas, há também um retrocesso na sua obrigação. O que acho é que, num certo sentido, estes mecanismos foram sempre uma ilusão, uma forma de desregulação. Em vez de haver uma revolução de atividade das empresas diretamente pelo Estado, estabelecendo limites às suas atuações, às suas emissões, à sua conduta no estrangeiro, nós aceitámos, de forma ingénua, que a autorregulação por parte das empresas era suficiente.
Aceitámos que a fonte destas obrigações fosse um pouco ‘deslegalizada’, numa espécie de outsourcing da regulação da ação levado a cabo pelas próprias empresas e mecanismos de mercado.
E o que estamos a verificar é que havia uma certa bondade – e alguma razão – neste outsourcing. Isto não dispensa, de forma alguma, uma atuação mais hard law, mais forte, por parte dos próprios Estados, estabelecendo limites que sejam objetivos.
Quando este tipo de retrocessos de políticas ESG existe, é porque uma empresa também percebe que não é uma questão de ter ou não medo. É por haver uma incerteza quanto à sua atuação, sem consequências jurídicas que a obriguem a agir mais ou menos em consonância com obrigações morais ambientais.
E a verdade é que uma obrigação ou é jurídica ou não é. Portanto, se dizemos que uma empresa tem uma obrigação moral de agir de determinada forma, que pode ser mais ou menos variável, que o próprio mercado vai controlar-se, que a incerteza que existe no benefício da atuação da empresa é grande e não há uma consequência jurídica imediata, qual é o incentivo que a empresa tem para ajustar o seu comportamento?
Acho que é importante termos sempre presente que as empresas, enquanto agentes económicos, são avessas à incerteza e ao risco. Portanto, quanto mais houver clareza do ponto de vista da sua atuação, melhor. E esta clareza é dada por regras objetivas, criadas por parte do Estado.
Estas obrigações estão então inteiramente dependentes da vontade dos Estados?
Sim, depende muito dos Estados e da sua vontade. Se pensarmos que a ação climática, seja de adaptação ou de mitigação, para além do tipo de meios que precisam de ser empregues — meios orçamentais e políticas públicas — também exigem decisões valorativas e opções que são comunitárias.
Reduzir emissões de gases com efeito estufa não é apenas carregar num botão. Implica termos uma boa política alimentar, por exemplo. Implica termos outras políticas de transportes, de planeamento urbanístico. Os efeitos destas políticas são tão abrangentes que não podemos deixar que sejam feitas sobretudo por uma autoatuação do mercado.
Quais são os próximos passos para reduzir esta ingenuidade das políticas de sustentabilidade de que fala, de forma a aumentar a legislação?
Desde logo, centrar a ação no Estado. Assumir que há aqui um conjunto de políticas públicas que têm de ser mesmo adotadas pelo Governo e por outras entidades públicas, sem prejuízo de haver instrumentos financeiros e de mercado. Tudo isto é extremamente benigno. Temos de ter uma ação do Estado top-down e concertada.
Não podemos ter apenas planos para reduzir emissões de gases com efeito de estufa, tem de haver um planeamento, até multianual e multissetorial, quanto ao que é que queremos fazer do ponto de vista de eficiência e soberania energética, por exemplo.
Os conflitos mundiais a que estamos a assistir têm muito mais peso nesta variação das políticas empresariais do que propriamente uma mudança de partido político noutro país. E, portanto, enquanto não tivermos uma política pública forte do ponto de vista de eficiência e de energia em geral, nunca teremos uma política climática adequada.
Esta conferência centra-se na celebração dos dez anos do Acordo de Paris. Que balanço faz deste tratado? Que papel tem tido a União Europeia neste caminho?
O Acordo de Paris pode ser visto de forma ambivalente. Há uma escola para a qual o Acordo tem sido um fracasso, desde logo porque o principal objetivo — conter o aumento da temperatura num nível inferior a dois graus e preferencialmente um grau e meio — parece ser inalcançável. Defendem que não teve uma concretização prática, do ponto de vista mundial, em garantir uma estabilidade do sistema climático.
Mas há uma outra visão, que eu partilho, que tende a ser mais otimista na leitura deste tipo de processos. A questão que muitas vezes coloco é: e se não tivesse havido o Acordo de Paris? Nós estaríamos mais bem posicionados para alcançar esta meta dos dois graus ou de um grau e meio? A resposta é claramente não.
A verdade é que o que tem sido feito é insuficiente à luz do Acordo. Mas também é verdade que, em dez anos, as coisas mudaram imenso do ponto de vista de funcionamento de Estados, de submissão de contribuições nacionalmente determinadas — as chamadas NDC (Contribuições Nacionalmente Determinadas) — de funcionamento das instituições, como o secretariado da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC).
Os Estados Unidos, que agora pretendem sair do Acordo de Paris, não vão sair da Convenção-Quadro, por exemplo. Não deixa de ser curioso que se mantêm vinculados ao principal dos tratados climáticos internacionais. Todos os Estados têm submetido as suas NDCs com maior ou menor cumprimento, bem como os EUA.
Acho difícil podermos dizer que o Acordo de Paris tem sido um fracasso. Não estabilizou o clima, mas certamente que não é por causa dele que não se estabilizou o sistema climático. E tem havido um avanço enorme, que num certo sentido era imprevisível.
Eu acho que era legítimo que em 2015 ou 2016 — que são as datas da adoção e da entrada em vigor — a maior parte das pessoas olhasse para o Acordo de Paris apenas como wishfull thinking e achasse que nunca teria uma grande implementação. Grande parte dos céticos, na altura, se visse o que é que está a acontecer em 2025, ficaria seriamente surpreendido com o avanço. É preciso fazer mais, mas ‘Roma e Pavia não se fizeram num dia’.
Este é capaz de ser o tratado mais conhecido a nível mundial. Eu acho que, no nosso dia a dia, o cidadão comum é capaz de citar e ouvir falar no Acordo de Paris e não noutro tratado.
Já a União Europeia, considero ser o melhor exemplo de sucesso de políticas climáticas. Mas aqui é que eu sou um bocadinho pessimista, porque acho que isso são más notícias. Porque, no fundo, a razão pela qual a União Europeia é mais bem-sucedida do que outros Estados — sendo que a União Europeia não é um Estado — não é apenas do ponto de vista climático e ambiental, mas também do ponto de vista de proteção de direitos laborais, de regulamentos ou diretivas europeias, de proteção de direitos dos consumidores, etc.
Em questões que são tão complexas do ponto de vista científico, mas também do ponto de vista de desenho de políticas públicas, e em que pode haver uma reação negativa do eleitorado, a União Europeia funciona como o bode expiatório ideal. Quem aprova um ato da UE, um regulamento ou uma diretiva, são duas instituições: o Parlamento Europeu, que é eleito diretamente, e o Conselho, no qual quem tem assento são os ministros com competência em função da matéria — isto é, ministros de cada Estado-membro.
E é curioso que nós olhamos para uma diretiva ou um regulamento como ‘nosso’, porque é um ministro nosso que está a votar, mas depois temos o mesmo ministro a vir perante o seu eleitorado dizer que não gosta deste texto, que não concorda, mas «Bruxelas é que obriga». Quantas vezes é que não lemos esta expressão? Mas Bruxelas são os nossos ministros.
No fundo, temos aqui um outsourcing da culpa. Isto é má notícia porque sugere que, se temos alguém para quem passar a culpa, é porque temos alguma dificuldade em explicar ao nosso eleitorado por que razão é que temos de adotar a política A, B ou C.
Em Portugal, sente que há lacunas jurídicas ou institucionais significativas na proteção ambiental e climática? Que leitura faz do meio?
Há várias lacunas, isso é verdade. Desde o ponto de vista legislativo temos uma Lei de Bases, mas que não tem sido devidamente desenvolvida. É preciso haver atos subsequentes dos dogmas legislativos que desenvolvem e concretizam alguns dos princípios, algumas das normas da Lei de Bases do Clima.
Continuamos com um enorme atraso neste desenvolvimento e concretização da Lei e também com enorme atraso na adoção, até ao nível mais regional, de planos de adaptação climática.
Porque é que temos este atraso?
Acho que, desde logo, temos um problema estrutural no nosso país de falta de meios, falta de mão de obra e recursos humanos qualificados em todos os setores. Não é que não existam — nós temos gente muito qualificada — mas vão-se embora, ou em termos de prioridades na função pública estão alocados a fazer muitas outras coisas.
E isso não é uma questão para ser resolvida pelo Ministério do Ambiente. Implica uma coordenação multinível — com autarquias, com a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional, com regiões autónomas — mas implica também, mesmo dentro do Governo, entre diferentes Ministérios. Portanto, se há uma falha em todos estes setores, vamos ter sempre problemas com esta concretização. Temos também um problema de articulação de competências, onde é difícil dialogar com um similar de outra área. Isto prejudica o desenvolvimento de políticas que são tão intersetoriais como, na verdade, políticas de mitigação ou de adaptação climática.
Tem havido um aumento no número de ações judiciais por danos climáticos ao longo dos anos, e também na sua dimensão geográfica e complexidade. É um sinal de progresso ou de falha política?
Em Portugal não tem sido muito visível. Temos muitos casos em que a questão climática está lá subjacente mas não foi explicitamente referida.
Já a nível mundial, acho que ainda é cedo para se fazer este juízo, desde logo porque há contextos geográficos, como no Brasil, por exemplo, em que houve um crescimento exponencial num determinado período, muito por reação ao governo Bolsonaro. Às vezes há fatores que iludem a perceção do que é que se está a passar.
Agora, a verdade é que há muito maior consciência sobre a questão climática — uma prova do sucesso do Acordo de Paris, como eu dizia há bocado —, e muito mais coisas a acontecer underground.
O aumento da litigância climática é uma prova de que o Acordo de Paris se disseminou na nossa linguagem quotidiana.
O que eu noto sobretudo aqui é uma evolução, e tem a ver com a maior complexidade. Nós passámos de uma fase inaugural em que a litigância era muito sistémica e estratégica, dirigida a casos de total ausência de políticas climáticas, e neste momento estamos a questionar perante tribunais a sua concretização. Ou seja, vamos olhar para leis de base e questionar se, em concreto, são adequadas, proporcionais e eficazes para a realização dos seus fins.
Qual considera ser o principal desafio jurídico do século XXI nestas matérias?
Saber falar com a ciência. Saber dialogar com outras áreas, seja ciência física, climática, geofísica, biologia, saúde ou geografia – conseguirmos dialogar na mesma frequência de onda. Isto é o que mais vezes noto no direito, neste contexto em particular, uma dificuldade de haver uma tradução para linguagem jurídica do que é que são juízos científicos.
Um aspeto que notei nos últimos anos, nos principais acordos e pareceres consultivos a nível mundial, foi ver a vontade que os juízes tinham em explicar a ciência climática como um todo, em termos genéricos, havendo depois uma transição muito brusca para os próprios dados do caso, que de repente se tornam acientíficos. Parece que não sabem fazer esta ponte de ligação.
Nós temos ainda dificuldade em fazer esta planagem, em olhar para aquilo que é uma ciência não jurídica e traduzi-la numa norma, num plano, numa lei, num regulamento. Talvez só assim possamos sair da tal bolha otimista para uma bolha realista, sem passar pela pessimista.


