Na capa deste livro, recorremos ao triângulo de Penrose, um objecto impossível. A sua criação deve-se ao artista sueco Oscar Reutersvärd, em 1934. Foi popularizado por um matemático, Roger Penrose, na década de 1950. Penrose descreveu-o como um objecto impossível em forma pura. Este tipo de imagem foi depois usado pelo artista gráfico neerlandês M.C. Escher. Estes objectos, visualmente atraentes, são aqui usados com um propósito: o de mostrar como coisas, objectos, formas distintas, se podem complementar tão harmoniosamente que se tornam indistinguíveis. O impossível pode ser possível. Duas notas são necessárias antes de prosseguirmos: esta «mistura» não cria uma amálgama – os objectos continuam a ser diferentes – e a harmonia é polifónica – não «cantam» da mesma maneira. Às vezes, na prática, mais que a harmonia, existe desafinação. Contudo, são as desafinações harmoniosas que definem a democracia, na sua busca incessante de uma composição coerente.
O Estado, as empresas/mercados e a sociedade civil compõem um triângulo de boa governança. A relação entre estes três elementos é crucial, mas também é dinâmica, tumultuosa, frequentemente desconfiada. Quando o triângulo se harmoniza e a confiança impera, os benefícios são partilhados: sociedades ricas em confiança são espaços mais prósperos. Quando os lados se antagonizam ou se misturam em teias de interesses dúbios, o triângulo enreda-se, parte-se e todos acabam por perder – incluindo os que procuram tirar partido dos desequilíbrios.
Neste triângulo, cada vértice traz uma contribuição específica. O Estado fornece a estrutura fundamental ao funcionamento das sociedades/nações. Deve garantir o primado da lei, a separação de poderes, o bom funcionamento das instituições e a garantia e protecção do Estado de direito (ver glossário). As empresas e os mercados trazem a dimensão da inovação, da destruição criativa e da criação de valor. Empresas e mercados são realidades diferentes; os mercados, enquanto mecanismos de coordenação das trocas económicas, enfatizam a competição e os preços. As empresas constituem as unidades de criação de valor graças à sua capacidade de produzir produtos e serviços de forma eficiente. Por facilidade, quando aludimos a empresas consideramos quer estas unidades quer os mercados em que elas competem e cooperam.
Se, conceptualmente, estes três pilares são independentes e as suas formas e fronteiras são fáceis de discernir, a realidade é mais complexa e favorece a hibridização desses pilares. Em relação ao capitalismo de Estado chinês, por exemplo, é difícil destrinçar os domínios público e privado. Negociar com as empresas chinesas equivale porventura a negociar com o Estado chinês. Porém, não é preciso ir tão longe. A introdução de mecanismos, desde logo contratuais e institucionais, de cooperação público-privada no quadro de um Estado dialógico e aberto à iniciativa privada, cria por vezes realidades híbridas que conjugam elementos destes vários pilares. Uma organização empresarial pode ter um papel importante na resolução de conflitos e na preservação da paz – por exemplo, dando trabalho e reintegrando antigos combatentes islamistas, como fez o Retro Café na Indonésia.
Defendemos que os três sectores devem ser independentes (o que não significa que não se devam associar e cooperar de forma transparente) e que devem manter uma relação movida pela defesa do bem comum. Essa defesa é assegurada de forma mais robusta quando alimentada pelo reconhecimento da importância e de cada um dos papéis destes três pilares. Processos de regeneração da sociedade, como o levado a cabo no País Basco, implicam parcerias entre os sectores público e privado, as quais evoluem de forma dinâmica à medida que a própria sociedade vai mudando. As relações construtivas entre sectores não se limitam ao Norte de Espanha, sendo típicas das sociedades inclusivas. Isso não tem acontecido na sociedade portuguesa em tempos recentes. Considerem-se as palavras de Manuel Carvalho num editorial de 2021 do jornal Público: «Se há um dano colectivo no discurso público alimentado pela “geringonça”, está na ideia de que o Estado é o zénite e o nadir de uma democracia europeia. Na apologia de que o sector privado é um perigo até prova em contrário. Na ideia de que é possível ter um SNS ou um sistema público de ensino de alta qualidade sem termos uma economia dinâmica para os sustentar. Na convicção de que, se os salários dos portugueses são tragicamente baixos, ou se os jovens mais qualificados emigram, é por causa de um falhanço na política e não pela sequência de uma economia asfixiada por impostos, regulamentos e protecções públicas.»
Porque são fundamentais os três pilares
Muitas sociedades humanas têm sido dominadas por um só pilar. Nos casos em que o pilar dominante foi o Estado, tomaram a forma de ditaduras de esquerda ou de direita, empenhadas em ensinar os cidadãos como viver as suas vidas e em dirigir centralmente a economia. Nessas sociedades orwellianas, o que interessa ao grupo dominante é a manutenção do poder, o «poder puro» de que falou Orwell no livro 1984. O resultado é conhecido: censura, omissão de liberdades, pouca eficiência, pouca produtividade, escassa capacidade de criação de riqueza, pouco desenvolvimento.
Em resposta a esta dominação estatal, algumas sociedades procuraram um modelo segundo o qual o mercado resolveria os problemas sociais graças a uma vaga de empreendedorismo com outras preocupações que não apenas a criação de riqueza. O objectivo deste modelo foi o de «libertar» os actores do mercado da presença asfixiante do Estado, afinando a sua acção em resposta aos sinais provenientes do mercado. Este movimento de desestatização das sociedades e da economia – incluindo liberdades políticas, cívicas, sociais e de circulação, assim como desregulação, privatização, impostos baixos e comércio livre – produziu melhores resultados do que o modelo estatista, como o comprovam todos os dados acerca do progresso e da prosperidade.
No entanto, é evidente que o dinamismo económico ficou aquém do desejado, e que não foi capaz de evitar fenómenos disruptivos para as sociedades modernas. A globalização, com o seu potencial de deslocalização e digitalização, trouxe novos e complexos desafios: maior instabilidade laboral, maior dificuldade na compra ou arrendamento de habitação própria, maior injustiça fiscal, maior possibilidade de concentração empresarial, sobretudo na economia digital, extracção de rendas.
Este processo, bem descrito por Yochai Benkler, resultou numa tendência de estagnação dos salários, na concentração do poder em actores empresariais cada vez mais poderosos – como as empresas big tech – que funcionam como um novo Big Brother e que agem, em muitos casos, com poder e influência por vezes vista como equiparável à dos próprios Estados em que actuam.
A falta de respostas satisfatórias para os novos desafios abriu espaço à aceleração do populismo. À direita, o populismo nacionalista visa proteger os cidadãos dos efeitos da globalização, apostando numa utopia nostálgica do passado em que cabe ao Estado defender a boa moral e conservar os traços identitários da civilização ocidental; à esquerda, o populismo identitário deixou de se interessar pela exploração dos mais pobres, na tradicional visão de luta de classes, e passou a centrar-se nas questões identitárias, tudo explicando com a opressão colonial pelo homem branco, com tentações censórias para aqueles que se arriscam a «malpensar», voltando à terminologia de Orwell em 1984. Estas forças, normalmente apelidadas de woke, são anticapitalistas e tendencialmente iliberais, como se viu na dificuldade em censurar a invasão russa da Ucrânia.
Em resumo, os episódios recentes confirmaram aquilo que já se sabia:
Os mercados são o motor da inovação. Mas não são perfeitos. Deixados a si próprios, tenderam nestes anos a focar a atenção na criação de valor para o accionista, um mantra simplificador da presença complexa das empresas na sociedade. Na visão tradicionalista, Jensen e Murphy descreveram os políticos, os sindicatos e a imprensa como estando presentes, sem terem sido convidados, na tomada de decisão empresarial. A ideia, muito friedmaniana, de que as decisões de negócio deviam ser deixadas a quem gere os negócios levanta inúmeras dificuldades práticas na ausência de pesos e contrapesos capazes de evitar o abuso do poder e a concentração empresarial com cariz rentista. Daí a importância da existência de sistemas de pesos e contrapesos institucionais – incluindo a lei formal e as normas sociais informais. Como explicou o prémio Nobel Robert Shiller, «as economias capitalistas deixadas entregues a si mesmas sem o papel equilibrador do governo e do Estado são essencialmente instáveis». Compete ao Estado garantir e preservar as condições para o respeito da autonomia e liberdade das pessoas, para o funcionamento da mobilidade social, para o estabelecimento de um quadro de justiça, igualdade e liberdade, equilibrando os interesses particulares e promovendo o bem comum.
Os Estados têm papéis fundamentais, «cuja intervenção deve ser limitada ao essencial». Quando ultrapassam esse foco no essencial, tendem para o abuso e perpetuação de poder. Não tendo de competir em mercados livres, tornam-se facilmente burocráticos e ineficientes. A sua dimensão afasta-os da realidade local, e por isso oferecem com frequência soluções ineficazes. Promovem, nos piores casos, o compadrio e o nepotismo (ver glossário), normalmente justificado em nome da imprescindível «confiança política». Os seus dirigentes, com alguma frequência, transitam numa porta giratória (ver glossário) para empresas que eventualmente beneficiaram enquanto governantes. Com certeza, as práticas nepotistas não são apanágio exclusivo do Estado: as empresas padecem do mesmo mal. Um programa formativo (com uma componente alegadamente lúdica) do Boston Consulting Group para os filhos de quadros de topo do escritório de Londres mereceu críticas internas e mesmo uma capa do Financial Times. Os aparelhos burocráticos do Estado são difíceis de reformar e mostram excessiva complacência com as falhas – incluindo falhas graves –, como demonstrado pela morte de Ihor Homenyuk às mãos do Estado português.
A sociedade civil tem um papel fundamental na criação de boas sociedades: cria mecanismos de resolução de problemas não tratados pelas empresas e pelo Estado. Mobiliza as forças sociais para a resolução de problemas de forma mais próxima do local onde ocorrem. Porém, pode canalizar essas energias de uma forma destrutiva e ameaçadora das instituições.
Este artigo foi publicado através de um excerto original do livro ‘Manifesto para um Capitalismo Humanista’ dos autores Miguel Pina e Cunha, Milton de Sousa e Adolfo Mesquita Nunes, com o consentimento dos mesmos.