O Brasil vive da ternura e da brutalidade na mesma respiração: a doçura solar de Jorge Amado a conviver com o funk suado das ruas onde Tim Maia jurava que «vale tudo». Hoje, porém, sobra mais a pancada do que o abraço. A morte espalha-se pelas cidades com a naturalidade de um refrão velho, a polícia dispara a cumprir um ritual, e os cadáveres empilham-se com a frieza de uma estatística. Para Rafael Alcadipani, um dos maiores especialistas em estudos organizacionais, o país cedeu à violência como método e habituou-se ao sangue como se fosse parte da paisagem.
Em 2024, cerca de 6.243 pessoas morreram em intervenções policiais no Brasil. Em vários estados, mais de metade das mortes violentas registadas vieram da ação da polícia. E, nos estados onde há dados raciais disponíveis, a esmagadora maioria das vítimas é negra. Num tempo em que o medo virou política pública e o crime atravessa oceanos para tocar Portugal, resta perguntar: o que é um país que já não se espanta com os seus mortos?

Comecemos pelo essencial, professor. Quando a morte em massa se repete, o que é que isso nos revela? Falha institucional, política deliberada ou uma sociedade que já naturalizou o sangue?
Acho que são as três coisas. No Brasil, estas operações policiais violentas não são novas. Acontecem há muitos anos. E mostram que, hoje, a vida tem pouco valor no país. Há uma raiz histórica de brutalidade: a colonização, a escravidão que deixou marcas profundas e originou uma população que nunca foi realmente incluída. O brasileiro é visto como alegre, cordial, mas é também extremamente violento. Os números estão aí: somos um dos países com mais homicídios do mundo.
Ao mesmo tempo, há uma ultradireita que acredita que matar resolve a segurança pública. Se isso fosse verdade, o Brasil já seria o país mais seguro do mundo.
Sobre o Rio de Janeiro: trata-se de um território onde o Estado parece incapaz de entrar. A violência policial é inevitável?
O Rio tem uma especificidade: há zonas totalmente dominadas pelo crime. Para fazer uma operação ali, precisa de um aparato enorme. Não é como prender uma pessoa numa freguesia portuguesa. Mas isso não justifica tudo. A questão essencial é: qual é a estratégia antes e depois da operação? O Comando Vermelho saiu enfraquecido? Ou estes criminosos serão rapidamente substituídos? Sem estratégia, só perpetuamos o problema.
O medo é o cimento que une o poder e o povo? É hoje o principal instrumento político da segurança pública?
O medo é hoje o principal instrumento político da segurança pública no Brasil, em Portugal e no mundo. Em contextos de insegurança, aparecem sempre soluções mágicas. No Brasil é a extrema-direita, em Portugal o Chega. As pessoas têm medo real: do roubo do telemóvel, do assalto, do quotidiano. Quem aparece com discursos fáceis ganha apoio.
Sim. Em Portugal cresce a narrativa que liga imigração à criminalidade. Há evidência científica que sustente essa correlação?
Atribuir crime ao estrangeiro é fácil, mas simplista. O que existe é marginalização: quando o imigrante não está inserido, é mais provável cair no crime. Falta política pública. Mas há também um lado de hipocrisia: durante séculos, foram os europeus que atravessaram o oceano e entraram nos nossos países. Beneficiaram-se da nossa economia, da escravatura, de tudo.
E há outro ponto: muita economia depende de estrangeiros. Tire todos os imigrantes da economia portuguesa e veja o que acontece.
O crime do dia-a-dia pode envolver pessoas que não são naturais do país, mas isso tem mais a ver com marginalização do que com nacionalidade. Enquanto isso, o crime do colarinho branco, muito mais danoso, raramente envolve imigrantes.
Falou de políticas públicas. O Brasil, com mais gente na universidade, caminha para menos violência?
Sim, mas não só por isso. Há três fatores: Migração do crime para o digital. O criminoso percebe que o golpe de WhatsApp rende mais e tem menos risco. Assim, o crime está a tornar-se menos violento. Inserção social. O Brasil retirou muita gente da pobreza, embora ainda insuficiente. E envelhecimento da população. Pessoas mais velhas cometem menos crimes. É um fator decisivo.
E esta violência não fica dentro das fronteiras. O PCC está hoje em articulação com máfias europeias, até com entrada forte em Portugal, certo?
Sim. O PCC já está na Europa. Liga-se à máfia italiana, opera nos portos europeus e tem forte interesse em Portugal, tanto por causa dos portos como da lavagem de dinheiro. É um problema real, crescente e delicado.
Falta articulação com o Brasil?
Sim. A articulação é muito limitada e restrita à Polícia Federal, não às polícias estaduais. Além disso, há um problema sério de remuneração em Portugal.
Policias mal pagos são vulneráveis à corrupção, e o PCC tem muito dinheiro. É urgente vigiar negócios, compras, fluxos financeiros. Se o PCC se infiltra nas estruturas do Estado, é difícil removê-lo.
É possível reformar as polícias sem abandonar a ideia do inimigo interno?
É muito difícil. A reforma policial é um debate antigo e ainda não conseguimos implementá-la.
A polícia tem de ser o último recurso. Antes dela, importam a educação, políticas sociais, organização do espaço urbano.
Hoje, muito do crime digital está a ser combatido pelas empresas porque a polícia não tem estrutura. A polícia do futuro terá de ser outra coisa.
Mas, sobretudo, precisamos de atuar antes: quando o jovem dá sinais de evasão escolar, ausência da figura paterna, famílias desestruturadas. Esperar que o problema chegue à polícia é esperar tarde demais.
Em Portugal já foi discutido juntar GNR e PSP. Seria eficaz?
Polícias maiores são mais difíceis de controlar. O problema central aqui parece-me ser mais a articulação entre a PSP e a PJ. O crime grande nasce nos sinais do crime pequeno. A troca de informação é crítica. A unificação é um processo complexo e pode não trazer os benefícios esperados.
E no Brasil?
No Brasil, a fragmentação entre polícia militar e polícia civil causa enormes perdas de informação. Talvez uma polícia estadual unificada pudesse ser benéfica, desde que se resolva a questão do controlo.
Depois de estudar poder e violência tantos anos, ainda acredita numa polícia mais democrática?
Acredito, sim. Há muita gente boa na polícia, muita gente séria e comprometida com direitos humanos. O problema é que a política instrumentaliza a polícia. Repare: estas grandes operações no Rio acontecem sempre perto de eleições. A morte dá votos. O governador sobe na popularidade em cima de cadáveres.
Quem vigia isso?
O Ministério Público. Mas poderia haver mais instituições a fiscalizar, como em Portugal. A vigilância democrática é fundamental.



