O entusiasmo com a autenticidade campeia – na comida, nas viagens, na cultura, nas amizades, no amor, nos políticos, nas marcas. Não surpreende, pois, que a onda da liderança autêntica tenha vindo a ser surfada. Eu próprio já a surfei. E por boas razões, supunha eu. O líder autêntico, afirmando o que pensa, sem rodeios, suscita-nos confiança. Sendo o nosso líder franco connosco, sentimo-nos encorajados a responder-lhe com franqueza. Será exatamente isto que ocorre, como eu imaginava? Não é. Por duas razões fundamentais.
Primeira razão: a transparência e a franqueza de um líder, se não for acompanhada de sensatez, empatia e respeito pelos outros, transforma-se em brutalidade, sobranceria e humilhação. Carlos Ghosn, caído em desgraça após ter sido alvo de idolatria pela forma como salvou e fez progredir a Nissan, era transparente, franco e aberto. Mas desenvolveu tamanha soberba que ninguém se atrevia a contrariá-lo e a comunicar-lhe duras verdades. A sua franqueza era de tal forma bruta que as pessoas temiam ser francas com ele. Assim perdeu o pé na realidade e, quando se deu conta, estava à perna com a Justiça nipónica. Já era tarde.
Tenho conhecido líderes, assumidamente francos, que criticam as pessoas soas por não serem francas e diretas com eles. Mas esquecem-se do diferencial de poder entre eles e a equipa que lideram. Alegadamente, dizem as duras verdades. Mas afirmam-nas de forma implacável. E tão depressa convidam uma pessoa a expressar genuinamente o que pensa, como logo a humilham se não ouvirem o que gostariam de ouvir.
A segunda razão para ser cauto acerca das alegadas virtudes da liderança autêntica radica numa sombria noção de autenticidade que algumas pessoas perfilham ou preferem. Se a autenticidade for entendida como a tendência para expressar o que se é, então a mentira pode ser uma expressão de autenticidade. Eis o que escreveu Muriel Leuenberger (Universidade de Zurique): “Uma pessoa é autêntica se viver de acordo com o seu conjunto coerente de valores, objetivos, traços, crenças e outras caraterísticas da personalidade. Se mentir for consistente com o que a pessoa é, com os seus valores, objetivos e outras características, então essa pessoa é uma autêntica mentirosa”.
Em certa medida, é neste tipo de autenticidade que assentam alguns populismos. Trump, por exemplo, deve parte do seu carisma junto dos seus indefetíveis apoiantes a uma putativa autenticidade. Para esses acólitos, Trump diz, sem pudor, o que os “políticos do sistema” escondem ou omitem. Trump veicula uma narrativa que sustenta preconceitos e ódios desses apoiantes, e diz as “verdades” duras que eles gostariam de comunicar aos opositores. Quando um líder diz “verdades” que as pessoas querem ouvir, consoante a conveniência política de cada momento – está a ser autêntico. Um autêntico mentiroso.
A vida política portuguesa, à esquerda e à direita, não é virgem nesta matéria. Quando um populista ergue bandeiras políticas que contrariam o que ele próprio defendera numa tese de doutoramento, está a ser um autêntico mentiroso. Quando, perante acusações de desonestidade, esse populista se defende alegando que “a minha tese é ciência, sempre distingui a parte opinativa da parte científica», está a sustentar uma mentira autêntica. As pessoas não aceitariam que um médico lhes prescrevesse uma terapia oposta à que ele próprio tivesse advogado num trabalho científico por si escrito – mas algumas pessoas consideram autêntico um líder que tem o desplante de defender na arena política uma tese que ele próprio contrariara em trabalho científico.
Tanto a saúde da vida organizacional quanto a da democracia dependem da observância, por líderes e liderados, de um conjunto básico de princípios. O seu cumprimento é exigente e, por vezes, repleto de desafios e tensões. De um líder espera-se que seja transparente e corajoso, mas também sensato e atento ao efeito das suas palavras sobre as pessoas. Que se preocupe autenticamente com os liderados e a comunidade – e insufle menos o seu próprio ego. Que escute ativa e genuinamente. Mas também dos liderados e dos cidadãos se requer responsabilidade. Que cultivem o espírito crítico e não caiam nas malhas do culto da personalidade. Cuidado, pois, com algumas formas de autenticidade.
Este artigo foi publicado na edição de verão da revista Líder com o tema de capa A Grande Questão: Verdadeiro ou Falso?. Subscreva a Líder aqui.