A democracia não é um objeto de museu: vive, respira, falha, renasce. Hoje, dia 15 de Setembro, quando se assinala o Dia Internacional da Democracia, a Europa mostra-se dividida entre a solidez das suas instituições e a fragilidade do seu pulso social. O caso mais flagrante é o de França.
Na última semana, em Paris, a democracia deu um dos seus abanões mais fortes. O primeiro-ministro François Bayrou apresentou ao Parlamento um orçamento de ferro: cortes de dezenas de milhares de milhões de euros, redução de feriados nacionais, contenção em praticamente todos os sectores. Para se legitimar, arriscou tudo — pediu ele próprio uma moção de confiança.
Perdeu. A derrota foi clara, sem margem para ambiguidades. O Parlamento rejeitou o plano e, com ele, derrubou o governo. Bayrou saiu de cena, deixando atrás de si um rasto de protestos nas ruas e um vazio político no coração da quinta economia mundial.
Emmanuel Macron moveu-se depressa. Chamou Sébastien Lecornu, ministro da Defesa, 39 anos, um dos seus aliados mais fiéis. Lecornu traz consigo experiência em pastas variadas — dos territórios ultramarinos à ecologia — e a reputação de pragmático. Mas o que herda é um país em combustão: um parlamento fragmentado, sem maiorias estáveis, e uma sociedade que já baptizou o seu novo protesto como ‘Bloquear Tudo’.
A missão é ingrata: aprovar um orçamento que já fez cair um governo, segurar a confiança dos mercados e, ao mesmo tempo, oferecer respostas políticas a uma população cansada de austeridade. Lecornu começa o mandato com a legitimidade formal do cargo, mas sem uma base parlamentar sólida. É o retrato de uma democracia sob tensão — funcional, mas à beira da paralisia.
Alemanha, Itália e a Península Ibérica
A Alemanha enfrenta um duplo desafio: a popularidade das conjuntas políticas tradicionais está em erosão enquanto a AfD ganha terreno, sobretudo em centros urbanos e regiões industriais. O escrutínio regional em North Rhine-Westphalia surge como um barómetro crítico para o governo de Friedrich Merz — cujo empenho em reforçar os serviços de inteligência e a política de segurança sinaliza a tentativa de responder a novas ameaças, mas não resolve a fragilidade doméstica nem a polarização crescente.
Em Itália, o governo de direita consolidou medidas de segurança que críticos classificam como repressivas face a protestos, e capitalizou fragilidades da oposição após derrotas em referendos. A governação de Giorgia Meloni tem mostrado uma aposta clara na ordem pública e numa diplomacia proativa (nomeadamente sobre sanções à Rússia). Assim, tem mexido com as expectativas europeias sobre equilíbrio entre direitos civis e segurança.
Mais a oeste, em Espanha, o Executivo de Pedro Sánchez vive um ciclo de desgaste: investigações e acusações contra figuras próximas fragilizaram a coesão da coligação e impuseram uma agenda de contenção política. Projetos sociais e laborais têm sido travados na arena parlamentar, evidenciando uma governação presa a equilíbrios frágeis entre aliados e aliados ocasionais. A tensão social traduziu-se em manifestações massivas e numa erosão do capital político do Governo.
Portugal continua a debater o ciclo de instabilidade que trouxe três eleições em poucos anos. O governo minoritário dos sociais democratas tomou posse e tenta avançar reformas económicas e laborais que já provocaram forte oposição de sindicatos. Ao mesmo tempo, a ascensão do CHEGA ao estatuto de força relevante reorganizou o espaço político e complica maiorias estáveis. Estas dinâmicas mostram um país à procura de estabilidade, mas com tensões reais entre sustentabilidade financeira e coesão social.
Países Baixos e Nórdicos
A saída de Geert Wilders da coligação precipitou a queda do executivo e deixou os Países Baixos em administração transitória, com decisões sensíveis (especialmente em defesa e nas relações com a NATO) a exigir consensos difíceis. O labirinto pós-colapso indica que o voto populista ainda consegue reacender crises institucionais mesmo em democracias com tradição de consensos.
Os países nórdicos mantêm uma postura reforçada em defesa e apoio à Ucrânia (com pacotes significativos de ajuda militar). Ao mesmo tempo que debate temas sensíveis: na Suécia a emergência do partido anti-imigração força auto-críticas e rebranding. Na Dinamarca o Governo aprova gigantescas compras de defesa. Já na Noruega, o fundo soberano e investimentos internacionais tornaram-se tema eleitoral. O resultado é um quadro menos uniforme do que o estereótipo de ‘nordic stability’: há pressões geopolíticas e dilemas democráticos reais.
Lições para o Dia da Democracia
O mapa europeu que surge neste Dia da Democracia é misto: instituições existem, eleições decorrem, colégios legais operam — mas a tensão entre legitimidade popular e capacidade de decisão institucional está em alta. Crises orçamentais, fragmentação partidária, pressões sociais e o avanço de forças populistas formam um cocktail que testa rotinas democráticas. Governabilidade sem perda de direitos; segurança sem erosão das liberdades; e mercados que não substituam o debate político.
Para quem escreve — e para o leitor — a mensagem é clara: lembrar a data não basta. É preciso reportar com fontes, explicar com clareza e propor caminhos concretos para reforçar confiança: transparência orçamental, canais claros para a contestação social, e uma imprensa forte que exponha responsabilidades. A democracia não sobrevive de rituais, sobrevive de estruturas que funcionem quando mais são necessárias.