Por entre os campos de lavanda da Provença e os subúrbios fervilhantes de Seine-Saint-Denis, retumba o passado uma nação que se pensa universal — mas que debate consigo mesma a cada minuto. É o país que deu ao mundo a Liberté, Égalité, Fraternité, mas que hoje se interroga sobre os limites dessas promessas. A torre Eiffel ergue-se como ícone eterno, mas as ruas de Paris ardem, ciclicamente, com a fúria contida das desigualdades sociais.
Em 2025, a França ocupa a 6.ª posição no Global Soft Power Index, destacando-se pela sua influência cultural, diplomacia global, prestígio gastronómico e poder simbólico na arte, na ciência e na moda.
No entanto, o Índice de Democracia 2024, da Economist Intelligence Unit, reclassificou a França como uma ‘democracia com falhas‘, com uma pontuação de 7,99 e um lugar modesto na 26.ª posição. O relatório aponta para uma queda na confiança nas instituições democráticas, marcada pelas tensões sociais, polarização política e um parlamento fragmentado desde as eleições legislativas antecipadas de 2024, que deixaram o país sem maioria estável.
Este é o sexto artigo da rubrica da Líder, ‘O estado de uma nação em sete minutos’. Todas as quintas-feiras, traremos um retrato de um país, explorando sucintamente quatro dimensões: cultural, política, económica e social.
Cultura
Na literatura, França é o ventre da modernidade — berço de Victor Hugo, cujas palavras em Les Misérables ressoam como salmos de justiça e compaixão. De Balzac a Camus, passando por Flaubert, Sartre e Marguerite Duras, cada autor acrescentou uma pedra ao edifício intelectual europeu — ora com o cinzel da crítica social, ora com o sopro existencial de um país que pensa tanto quanto sente.
Há também o teatro de Molière, que ensinou gerações a rir das vaidades humanas. Ou as cartas incendiárias de Simone de Beauvoir, que abalaram o patriarcado com lucidez e fogo.
França é um coração cultural pulsante. Paris, com o seu Louvre e a sua Bastilha simbólica, é tanto catedral do passado como sismógrafo do futuro. A Nouvelle Vague reinventou o cinema como linguagem de autor e gesto político, com Truffaut e Godard a filmarem a alma inquieta de uma geração.
A gastronomia é um património intangível da humanidade — o pão, o queijo, o vinho, a mise en place de uma identidade que se serve em pratos de história e elegância. A moda, nascida dos ateliês de Coco Chanel ou Christian Dior, desfila a silhueta de um país que dita tendências enquanto questiona o espelho.
No desporto, a França campeã do mundo de 1998 e 2018 é uma metáfora do seu mosaico social. Zidane, símbolo de integração e génio, representa uma nação feita de antagonismos. E a Tour de France reencena os mitos de uma nação, atraindo milhões de olhares fascinados pela beleza hipnótica de uma França em movimento.
Politica
Desde as eleições legislativas antecipadas de julho de 2024, convocadas após uma derrota significativa nas eleições europeias, o país encontra-se sem uma maioria absoluta na Assembleia Nacional.
Os três principais blocos — a esquerda radical do Nouveau Front Populaire (182 deputados), a coligação presidencial (168) e a extrema-direita do Rassemblement National (143) — compartilham um poder quase equitativo, resultando num impasse legislativo sem precedentes na Quinta República.
A dissolução da Assembleia Nacional pelo presidente Emmanuel Macron, em junho de 2024, foi vista como uma tentativa de restaurar a autoridade executiva, mas teve o efeito oposto. A crise de confiança nas instituições políticas aprofundou-se, com a população francesa demonstrando um ceticismo crescente em relação à política.
Além disso, a ascensão da extrema-direita, com o Rassemblement National consolidando-se como uma força política significativa, tem influenciado o discurso público e as políticas nacionais. Embora não reflita uma mudança ideológica generalizada na sociedade francesa, essa ascensão tem impactos profundos na política e na cultura nacional.
Em resposta a essa polarização crescente, filósofos como Michaël Fœssel e Bruno Karsenti propõem uma renovação da democracia social, focada na justiça social. Apelam a uma integração inclusiva, como forma de combater o nacionalismo reativo e excludente.
Economia
A economia francesa registou crescimento nos últimos anos, impulsionada em grande parte pelas reformas fiscais de Emmanuel Macron, que privilegiaram a redução de impostos para os mais ricos. No entanto, enquanto as fortunas aumentam, o número de pessoas em situação de pobreza também subiu. Desde 2017, a taxa de pobreza no país aumentou de 13,6% para 15,4%, a única elevação deste tipo na União Europeia.
O crescimento económico, embora modesto, mas inegável, não conseguiu atenuar as desigualdades. A classe média, por sua vez, viu o seu poder de compra deteriorar-se, enquanto as disparidades se acentuam entre os mais ricos e os mais pobres.
Em 2024, a inflação em França apresentou uma desaceleração significativa, com o índice de preços ao consumidor a aumentar apenas 1,3% ao longo do ano, comparado com 5,9% em 2022 e 4,9% em 2023. Este abrandamento foi impulsionado por uma redução nos preços da energia e uma estabilização nos custos dos bens essenciais.
No entanto, apesar dessa desaceleração, a inflação manteve-se elevada em certos setores. Produtos alimentares, como ovos e massas, registaram aumentos superiores a 15%, o que contribuiu para um sentimento persistente de perda de poder de compra entre os consumidores.
Em resposta a essa desaceleração da inflação, o governo francês procedeu à redução da taxa de juros do Livret A, uma medida que reflete a diminuição das pressões inflacionárias.
Sociedade
A sociedade francesa enfrenta desafios demográficos significativos, com uma população envelhecida e uma taxa de natalidade em declínio. Em 2024, a França registou 663.000 nascimentos, uma diminuição de 2,2% em relação a 2023 e uma queda de 21,5% desde 2010. A taxa de fertilidade desceu para 1,62 filhos por mulher, o valor mais baixo desde o fim da Primeira Guerra Mundial.
Este declínio na natalidade, aliado ao aumento da esperança média de vida — 85,6 anos para as mulheres e 80,0 anos para os homens —, intensifica o envelhecimento da população.
Embora os dados específicos de 2024 não estejam disponíveis, a presença de comunidades imigrantes contribui para a diversidade cultural e para o rejuvenescimento parcial da população. No entanto, desafios persistem na integração e na coesão social, especialmente nas áreas urbanas.
O movimento feminista em França tem ganhado destaque, especialmente em resposta a casos de violência sexual de grande repercussão. O julgamento de Gisèle Pelicot, vítima de múltiplos abusos, mobilizou milhares em manifestações por todo o país, exigindo reformas legais e maior proteção para as vítimas de violência sexual. Estas mobilizações refletem uma sociedade cada vez mais consciente e ativa na luta pelos direitos das mulheres.
Conclusão
França é uma república orgulhosa, mas cercada por espectros: do império colonial à laicidade imposta; do Iluminismo às barricadas dos coletes amarelos; da Sorbonne às escolas de bairros esquecidos. França é plural, é mestiça, é inquieta — e é justamente nesse atrito entre tradição e transformação que reside a sua força e fragilidade. Mais do que Liberté, Égalité, Fraternité, o que a une talvez seja isto: on aura toujours Paris.
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