Num tempo em que as fronteiras voltam a endurecer e os ventos do mundo sopram cheios de ruído metálico, há um português a trabalhar no silêncio das máquinas para que a defesa europeia pense antes de disparar. Chama-se João Pedro Mortágua, engenheiro e diretor de Desenvolvimento de Negócios da Critical Software, e é dele que parte uma das peças invisíveis do projeto BEAST, o plano continental que quer dotar os mísseis do futuro de inteligência artificial. Financiado pelo Fundo Europeu de Defesa em trinta e cinco milhões de euros, o programa promete criar um sistema modular, rápido e pensante, capaz de aprender com as ameaças e reagir com precisão antes que o caos se instale.
De Coimbra para o coração da Europa, Mortágua fala da guerra como quem fala da vida — com prudência, com medo e com dever. Sabe que a tecnologia é um espelho do homem, e que um míssil inteligente não deixa de ser um artefato feito por mãos humanas. Mas acredita que o conhecimento, quando bem aplicado, pode salvar mais do que destruir.
É nesse cruzamento entre ética e inovação que nasce o BEAST — sigla de Boosting European Advanced Missile System Technologies — um projeto que junta vinte entidades de doze países, sob a liderança da empresa alemã Diehl Defence, e onde Portugal surge com uma missão precisa: levar a inteligência às máquinas.

O projeto BEAST pretende tornar o sistema de mísseis europeu mais inteligente e eficaz com recurso a IA. Pode explicar de forma clara como a inteligência artificial está a ser aplicada neste contexto?
O objetivo do projeto BEAST é desenvolver um novo míssil de curto alcance, modular e versátil, para operações ar-ar, defesa aérea terrestre e ar-solo. A Critical Software vai criar uma plataforma para operações de Machine Learning, permitindo ao míssil e aos sistemas de comando reconhecer padrões de ameaças, adaptar estratégias e otimizar o seu desempenho.
A Critical Software ajudará, desta maneira, a automatizar a implementação de modelos de IA no software principal desta nova geração de mísseis.
Qual é o papel de Portugal dentro do consórcio europeu de defesa e na criação de tecnologias críticas para a segurança do continente?
O consórcio que desenvolverá o projeto BEAST tem 20 entidades de 12 países europeus, sendo liderado pela Diehl Defence, empresa alemã de referência na área da defesa. Portugal estará representado pela Critical Software, responsável pela introdução de IA num míssil de nova geração. Pretende-se aumentar a autonomia, a adaptabilidade e a eficácia destes novos mísseis frente a ameaças emergentes (por exº ‘enxames’ de drones, guerra eletrónica, aviões, etc).
Os sistemas serão desenhados para serem modulares e interoperáveis, ou seja, capazes de se adaptarem a diferentes requisitos operacionais e evoluções tecnológicas.
Que desafios éticos, técnicos e regulatórios se colocam no desenvolvimento de sistemas de defesa baseados em IA, e como os abordam?
O projecto BEAST, que será financiado pelo Fundo Europeu de Defesa, tem que cumprir com os requisitos de ética, segurança e auditoria impostos pela União Europeia.
Foi nomeado um comité de ética pelo líder do consórcio, a Diehl, que garantirá que todos os desafios éticos, técnicos e regulatórios serão cumpridos. Tudo assente no Regulamento sobre Inteligência Artificial da União Europeia, o primeiro quadro jurídico do mundo para a IA.
Ainda que este Regulamento considere sistemas militares fora do âmbito civil, o consórcio pautar-se-á por padrões de segurança, transparência e responsabilidade.
O Fundo Europeu de Defesa investiu 35 milhões de euros no projeto. Que oportunidades concretas gera este financiamento para empresas portuguesas de tecnologia e inovação em defesa?
O projeto tem início previsto para Janeiro de 2026 e permitirá a Portugal ganhar experiência em IA aplicada à defesa, em plataformas críticas, interoperabilidade, requisitos de certificação, etc.
Esse know-how poderá ser, depois, utilizado noutros projetos, noutras áreas de engenharia. Participar num programa do Fundo de Defesa Europeu permitirá estabelecer parcerias com empresas e centros de investigação de outros países europeus. Num sector com uma importância crescente, onde a inovação é cada vez mais relevante e onde a capacidade de ‘entregar’ mais rápido é fulcral.
Num cenário de crescente instabilidade global, qual é a importância estratégica de Portugal investir em capacidades de defesa e software crítico?
No atual contexto geopolítico, é fundamental preservar a soberania e a autonomia operacional do nosso país. Ter software crítico e capacidades próprias reduz a dependência externa em momentos de crise, quer em termos de comunicações seguras quer em termos de tomadas de decisão em teatros de operações.
A interoperabilidade entre sistemas é outro aspecto vital para facilitar o nosso contributo em missões da NATO ou da União Europeia. Os sistemas e as capacidades das diferentes forças que participam em missões conjuntas devem ser capazes de comunicar, de trocar dados e de operar em conjunto de forma eficaz, mesmo quando vêm de países ou fabricantes distintos. A interoperabilidade aumenta, por conseguinte, a eficácia e a rapidez na tomada de decisão em combate.
Além do sistema de mísseis, que outras áreas de segurança ou defesa podem beneficiar do know-how da Critical Software nos próximos anos?
A Critical Software trabalha, desde a sua origem, no sector da defesa, em áreas tão distintas como sistemas de comando e controlo, interoperabilidade e cibersegurança. Também se debruça em software para controlo e operação de satélites de defesa, fusão de sensores, entre outros.
A IA é, sem dúvida, uma área onde queremos estar cada vez mais. A combinação de IA com software crítico constituem uma proposta de valor única. Isto vai permitir usar IA de forma fiável e certificável para defesa, espaço e setores de missão crítica.




