Resumo
Damos conta da presença da dor e do sofrimento na vida das organizações, e discutimos os efeitos curativos da compaixão. Analisamos os depoimentos de pessoas que, durante a Pandemia, experienciaram a crueldade e a compaixão nas suas organizações. O objetivo fundamental do texto é legitimar o papel da compaixão na vida das organizações e mostrar como ela pode ser, não apenas um paliativo da dor, mas também uma fonte regeneradora e criadora de maior resiliência.
Agradecimentos
Expressamos a nossa gratidão a todas as pessoas (mais de uma centena) que generosamente participaram na nossa pesquisa através da partilha das suas experiências durante a Pandemia. Os excertos dos depoimentos que apresentamos correspondem, naturalmente, aos textos escritos pelas pessoas – apenas os nomes foram alterados para que as fontes não sejam identificadas.
Introdução
Nas organizações, inevitavelmente, ocorrem frustrações, dor, stress, adversidades e desafios que suscitam preocupação. Um problema de saúde de um empregado, uma adversidade na vida familiar, a perda de um ente querido, um comentário destrutivo, o despedimento de alguém, a agrura gerada por um cliente hostil, uma avaliação de desempenho traumática, uma promoção frustrada – são exemplos de eventos que causam dor. A compaixão (do latim compati, ou seja, “sofrer com”[1]) ajuda as pessoas a lidarem com esse sofrimento.
Esse processo compassivo emerge no quotidiano das organizações, em múltiplas circunstâncias. Por exemplo, um líder dá-se conta da aflição sentida por um membro da equipa perante uma dificuldade e procura apoiá-lo e ajudá-lo. Ou um colaborador disponibiliza-se para realizar as tarefas de um colega que experiencia grande stress gerado por excesso de trabalho. Todavia, a compaixão mais expressiva é a que ocorre em momentos de crise e sofrimento: as instalações da empresa sofrem inundações ou um incêndio, é necessário reduzir postos de trabalho para salvar a empresa, um colaborador ou alguém da sua família contrai uma doença grave, ou uma Pandemia abate-se sobre a comunidade e obriga a alterar a atuação dos gestores[2].
Infelizmente, a dor e o sofrimento nem sempre resultam do normal funcionamento das organizações – antes podem ser consequência da crueldade. Por crueldade entenda-se a adoção de atos desnecessários, provenham eles de líderes ou dos empregados em geral, que geram sofrimento. Estas condutas podem resultar da personalidade maquiavélica, psicopata ou sádica dos seus autores. Podem ser o fruto de culturas organizacionais altamente competitivas e desumanas. Podem consubstanciar-se em condutas malévolas entre colegas de trabalho. Podem assentar em teorias de gestão, em mindsets, que encaram a empresa como espaço inerentemente amoral e no qual se considera que deve imperar a lei da selva para que os mais capazes sobrevivam e contribuam para a prosperidade da própria organização. A “tragédia grega”[3] da Enron foi, provavelmente, a consequência da combinação tóxica dos três fatores. A empresa, com fachada imperial, tinha alicerces de ganância, maquiavelismo, competição sem freios, mentira e intimidação. Tudo se desmoronou sobre as cabeças de clientes e empregados, mas também sobre as dos próprios líderes – alguns tendo dado cabo, literalmente, da própria vida.
Em suma: a dor e o sofrimento, a crueldade e a compaixão fazem parte da vida das organizações durante períod0s normais. No entanto, mesmo nas organizações que não fazem da insensibilidade e da crueldade o modo de vida habitual, as crises podem facilitar a emergência do lado mais sombrio dos humanos e das organizações em que trabalham. Felizmente, são também esses os momentos em que o lado mais solar das criaturas humanas, e de quem as lidera, se revela. A Pandemia foi um desses momentos em que os dois lados dos humanos – o sombrio e o brilhante – emergiram de modo mais revelador. Este trabalho lança um olhar sobre essa realidade. É seu objetivo refletir sobre a compaixão e a crueldade nas organizações, concedendo destaque a ocorrências experienciadas, ou praticadas, por líderes e liderados durante o período pandémico.
O texto começa por clarificar o conceito de compaixão, para depois se debruçar sobre os efeitos da mesma na vida das organizações e dos seus membros. Na segunda parte, damos nota de depoimentos partilhados por diversos líderes e liderados acerca das suas experiências durante a primeira fase da Pandemia. Globalmente, mostramos que a dor e o sofrimento são fenómenos inevitáveis na vida organizacional. Mas também damos conta de que, por vezes, resultam simplesmente da crueldade gratuita. Consideramos que a compaixão deve ser reabilitada como atuação legítima e recomendável na vida das organizações e na atuação de líderes e liderados.
Podemos resumir o nosso raciocínio em três pontos. Primeiro: a compaixão “está no cerne do que significa ser humano”[4] – e as organizações são comunidades de humanos. Segundo: todos os momentos, e não apenas os períodos de crise, são tempos que recomendam que se lidere com propósito e humanidade. Terceiro: como Andrew Hill escreveu no Financial Times, “os gestores que repentinamente descobriram a compaixão durante a Pandemia necessitam de torná-la permanente”.[5]
O que é a Compaixão
A compaixão representa a demonstração de zelo, preocupação, ternura e ajuda a pessoas que estão sem situação de vulnerabilidade ou atravessam circunstâncias difíceis e, por vezes, dolorosas.[6] Envolve as quatro etapas representadas na Figura 1[7]: dar conta da dor de outrem, desenvolver empatia para com essa pessoa, avaliar a situação e, então, responder com atitudes e atos compassivos. A compaixão autêntica envolve, pois, sentimentos e ações. Se abarcar apenas sentimentos, não passa de piedade. Se envolver ação sem empatia nem sentimentos, torna-se um ato mecânico cujo poder curativo é menor. Apenas com esforços empáticos de compreensão da real situação da pessoa que está a sofrer é possível adotar uma ação compatível com a vulnerabilidade dessa pessoa.
Figura 1
O processo compassivo[1]
A ação da pessoa compassiva perante a vítima da dor não representa o termo do processo – antes gera reações na outra pessoa que permitem ao agente compassivo ajustar os seus atos às necessidades da pessoa ajudada. Este ajustamento da pessoa compassiva às necessidades da pessoa em sofrimento é essencial a uma genuína compaixão. Se o agente compassivo se atribui, implícita ou explicitamente, o direito de estabelecer as medidas curativas sem intervenção autónoma e livre da pessoa em sofrimento, o resultado pode ser perverso. Quando se ajuda outrem a partir de um pedestal supostamente moral e sentimental, a compaixão demonstrada transforma-se num fardo adicional para a pessoa em sofrimento.
A compaixão demonstrada por algumas organizações para com os seus empregados, durante a Pandemia, foi uma compaixão autoritária – estimulando, premeditadamente, sentimentos de dependência e reverência. Foi uma compaixão utilitarista, instrumental. A compaixão que algumas organizações e a sociedade dedicaram aos trabalhadores essenciais foi, em muitos casos, uma compaixão simplesmente piedosa, por vezes hipócrita, sentimentalista, sem qualquer tradução na melhoria das condições materiais e salariais. Foi essa hipocrisia que enfureceu trabalhadores essenciais que, nas ruas, se lamentaram de que as palmas, os agradecimentos e os elogios não colocam comida na mesa.
(Nota ao leitor: mesmo que não seja crente ou religioso, se tiver oportunidade, visite esta belíssima escultura – uma representação fidelíssima do corpo humano em sofrimento e dos sentimentos associados; quanto mais atenção prestar a cada pormenor, mais deslumbrado ficará com a genialidade do artista)
Pieta (1497), escultura da autoria de Miguel Ângelo, Basílica de São Pedro, representando a paixão (sofrimento) de Cristo e a compaixão de sua Mãe[1]
O efeito curativo da Compaixão
A literatura é bastante clara sobre os efeitos curativos da compaixão nas organizações, quando esta é saudável. Quando as organizações apoiam os seus membros em momentos críticos – através do apoio direto ou legitimando e facilitando os atos de compaixão levados a cabo pelas pessoas – vários efeitos positivos emergem. Eis um desses efeitos: as pessoas, as equipas e a própria organização tornam-se mais resilientes. As organizações afetadas pelo ataque às Torres Gémeas, no 11 de setembro de 2001, que atuaram compassivamente para com os empregados sobrevivos e os familiares dos empregados perecidos, tornaram-se mais fortes e resilientes.[2] A Reuters foi uma dessas empresas. Phil Lynch, empregado há mais de uma década, havia-se tornado o CEO da empresa para a América dez dias antes da tragédia. Assumiu que a Reuters era uma empresa com alma e que era necessário colocar as pessoas em primeiro lugar. Adotou uma postura compassiva para com os empregados sobrevivos e os familiares dos empregados que haviam desaparecido. A empresa não só sobreviveu como conquistou maior empenhamento, lealdade e produtividade dos colaboradores.[3]
Outra consequência dos climas compassivos é a maior tendência das pessoas para se ajudarem mutuamente e empenharem-se mais no trabalho e no sucesso organizacional. Nas empresas em que imperou a compaixão durante a Pandemia, assistiu-se ao reforço da coesão e da cooperação. Diferentemente, quando a compaixão escasseia e a crueldade impera, as pessoas desenvolvem cinismo, assumem uma postura defensiva, olham por cima do ombro para se defenderem de possíveis “facadas”, e abandonam a organização logo que podem.
[1] Autor da fotografia: Stanislav Traykov. Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Michelangelo%27s_Pieta_5450_cropncleaned.jpg. Imagem inserida ao abrigo de Creative Commons Attribution-Share Alike 3.0 Unported license.
[2] Clair & Dufresne (2007).
[3] Vera et al. (2020).
[1] Construída e adaptada de Dutton et al. (2014).
Leia o ensaio completo aqui:
Este artigo foi publicado na edição nr16 da revista Líder.
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Por Arménio Rego, LEAD.Lab, Católica Porto Business School e Miguel Pina e Cunha, Nova School of Business and Economics
[1] É por essa razão que a tradição cristã celebra a Paixão (i.e., sofrimento e morte) de Cristo, e a procissão do Senhor dos Passos representa a procissão em que recordamos a Paixão, o sofrimento, de Cristo.
[2] Cunha & Rego (2020).
[3] Boje et al. (2004); Roberts & Thomas (2002).
[4] Kanov et al. (2004, p. 808).
[5] Hill (2021, p. 14).
[7] Do inglês NEAR: noticing, empathizing, appraising, responding (Dutton et al., 2014).