Líderes “grandes” detestam associar-se a coisas “pequenas”, fracassos e realidades menos reluzentes. Uma realidade menos luzidia representa um ataque ao ego de tão grandioso/as líderes. Se um/a líder é grande, como podem ser pequenas as suas construções? Não podem! Cientes dessa aversão do/a líder ao que não é grande, os liderados aprendem as desvantagens de lhe dizerem a verdade e as vantagens de lhe comunicarem o que é luzidio. Com o decurso do tempo, o fingimento vai assumindo o lugar da realidade.
As aldeias Potemkin ilustram bem essa ilusão. Potemkin era um líder militar e político russo, e terá sido amante da Imperatriz Catarina, a Grande. Movido pela mania das grandezas, levou a cabo a operação visando a anexação da Crimeia. Relata-se, muito provavelmente com exagero mítico, que terá criado uma espécie de “aldeias portáteis” para impressionar a imperatriz e convidados estrangeiros que a acompanhavam quanto esta visitou, em 1787, a Crimeia anexada, na sua rota ao longo do rio Dniepre. A aldeia era montada e povoada nas margens do rio para impressionar a comitiva imperial – e logo desmontada para ser remontada e povoada mais adiante ao longo da rota.
Aldeias Potemkin são, pois, apregoadas construções e presumidas realizações – isto é, obras de fachada – destinadas a encher o olho e esconder uma realidade mais sombria. Naturalmente, o processo apenas se mantém até um ponto de saturação, a partir do qual não é mais possível iludir a realidade. Muitos autocratas que tentam perpetuar-se no poder apenas se dão conta de que estão a ser jogados borda fora quando é demasiado tarde. Alguns já não conseguem sequer salvar a pele.
O que ocorreu com o desmoronamento da antiga URSS é emblemático. A partir de determinado ponto, iludir a realidade passou a ser uma empreitada inviável. Quando Gorbachov assumiu as rédeas do poder, procurou acabar com as aldeias Potemkin criando condições para que a realidade fosse conhecida e assumida. Permitiu que as pessoas tomassem contacto direto com ele quando visitava escolas, fábricas e hospitais – e indagava-as sobre o que consideravam errado. Para escapar às aldeias Potemkin, Gorbachov anunciava que visitaria um dado hospital – mas fazia a visita a outro. Como não havia tempo para a construção de obras de fachada, Gorbachov acabava por ver e ouvir coisas embaraçosas. E essa informação permitia-lhe tomar decisões mais fundadas na realidade.
O legado de Gorbachov é alvo de muitas interpretações. E nem todas são benévolas, sobretudo da parte de quem (Putin incluído) não lhe perdoa os ataques que fez à ortodoxia do Partido Comunista e a queda da União Soviética. Mas os esforços do líder recentemente falecido para acabar com aldeias Potemkin são credíveis, recomendáveis e úteis. Se o/a ocupante da pasta da Saúde, no governo de Portugal, pretende realmente conhecer a realidade dos hospitais, a pior estratégia é fazer visitas programadas e guiadas. Mais recomendável é fazer a visita sem aviso. Se o/a titular da pasta dos Transportes quer realmente tomar nota da realidade experienciada por quem usa os transportes públicos, nada é mais eficaz do que usá-los como qualquer cidadão, sem aviso prévio. A estratégia é válida para outros ministérios.
As lideranças empresariais não são imunes aos riscos de visitarem aldeias Potemkin. Quando uma liderança enfatiza “não me tragam problemas, tragam-se soluções”, é muito provável que os liderados aprendam a construir ou a mostrar fotos de aldeias Potemkin. Foi precisamente isso que ocorreu com a criação do software fraudulento que conduziu ao escândalo Dieselgate e tão caro custou à Volkswagen. A queda de Carlos Ghosn do trono da Nissan também se deve, pelo menos parcialmente, às aldeias Potemkin que lhe eram dadas a ver. Ghosn detestava que o contrariassem e não tinha tempo para “minudências”. Vivia mentalmente no Palácio de Versalhes, onde celebrou faustosamente o seu segundo casamento, no dia do 50º aniversário da sua noiva, durante uma festa inspirada em “Maria Antonieta”. Quando se deu conta do perigo, já era tarde. O laboratório de fachada que ajudou Elizabeth Holmes, fundadora da Theranos, a subir aos pináculos do sucesso foi também a causa da sua queda.
A ENRON criou e manteve uma sala de mercados falsa, no sexto piso da sua sede, para impressionar os analistas de Wall Street. Em terras lusas, todos os dias se erigem aldeias Potemkin. Regresso, pois, a um tema recorrente: as lideranças que desejam conhecer a realidade necessitam de criar condições para que as pessoas lhes comuniquem a verdade, pois mais dura que seja. A ganância e a mania das grandezas não são boas conselheiras.