As pessoas entram cedo no edifício do ministério, quando os corredores ainda respiram aquela luz cinzenta de começo de dia. O ecrã do elevador pisca números lentos, os passos vibram ao mesmo tempo que as pastas batem nas pernas. Pensa-se, por instinto, que um líder público é apenas aquele que ocupa a poltrona com insígnias e gravata. Mas há mais. Há uma quietude interior, uma convicção discreta, um nervo que dá ritmo mesmo quando o mundo à volta se desmorona.
No artigo da McKinsey que serve de ponto de partida para este texto, esse nervo chama-se carácter. E ao lê-lo, percebe-se que carácter não é uma palavra de marketing corporativo, mas uma chama que tanto ilumina o funcionamento da máquina pública como a pode consumir, se for esquecida.
O mundo que o líder público enfrenta
O ambiente em que os líderes públicos operam é uma tempestade constante. No estudo, mais de 800 líderes séniores do sector público de diversas regiões partilharam que quase 80 % esperam que os próximos cinco anos (2025-2030) sejam mais disruptivos do que o passado recente.
Orçamentos apertados, fuga de talento, revolução tecnológica (IA, automação), expectativas dos cidadãos em ascensão e confiança cada vez mais ténue no aparelho estatal. Tudo isso se entrelaça como trepadeiras numa parede antiga.
Mas mesmo sob esse peso, alguns líderes emergem para «fazer», mas também para sobreviver e acima de tudo para transformar. E é aí que o carácter entra como bússola.
Carácter como bússola, propósito como motor
Segundo o artigo, definir uma visão clara e um propósito foi apontado por cerca de 70 % como a competência mais importante para a excelência em liderança pública.
Mas algo mais se destacou: quando se pergunta «quem são os líderes que mais me marcaram?», a resposta não é «aquele que fez tal política», mas «aquele que não vacilou nos valores», «aquele que manteve a sua palavra«, «aquele que, quando pressionado, mostrou o conteúdo do seu carácter».
Uma citação forte do estudo: «Leadership is a potent combination of strategy and character. But if you must be without one, be without the strategy.»
Ora, isto significa que, para além de «saber o que fazer» — organizar equipas, recursos, políticas — há que «ser quem se é», ter integridade, coragem moral, persistência quando os holofotes esfriam.
Práticas concretas, mas vivas
O estudo identifica seis práticas essenciais para líderes de excelência, ou seja aqueles que conseguem virar navios gigantescos apesar da tempestade. Entre elas:
Definir a direção (‘set the direction’) ― ter visão, traduzi-la em estratégia, mobilizar recursos.
Mobilizar através de líderes (‘mobilize through leaders’) ― formar equipas com confiança, capacitar, dar espaço, assumir accountability.
Navegar no governo (‘navigate the government’) ― entender os tabuleiros, as alavancas políticas, as redes externas.
Gerir a própria eficácia (‘manage personal effectiveness’) ― poucos líderes dão conta de que a batalha não está só lá fora, está dentro: gerir energia, presença, vulnerabilidade.
Mas o que transborda é isto: estas práticas funcionam melhor quando o líder tem consciência de si (‘inside-out’ leadership), sendo capaz de reconhecer a sua fragilidade, ir ao combate sabendo que vai encontrar empecilhos, que vai errar, que haverá retaliações.
Por que importa e por que falha tanto
Porque o sector público é diferente. Não se trata de fazer dinheiro, mas de servir cidadãos, enfrentar elefantes invisíveis, explorar terras abertas sem mapa claro. No estudo, 68 % disseram que «mudança política» é o factor que mais distingue a liderança no sector público de outras lideranças.
E mesmo quem «sabe» definir direção ou mobilizar equipa sente lacunas em ‘co-criar com stakeholders’ ou ‘gerir recursos externos’. Ou seja: os esforços são enormes, muitos, mas a fragilidade humana emerge. O líder recua, hesita, falha.
Isto importa porque, no fim, o impacto social, como em escolas, saúde, segurança, ambiente, não espera que o líder tenha um currículo perfeito; espera que o líder seja crível, visível, alguém em quem se possa realmente confiar.
O carácter em contextos mais amplos
Para dar ainda mais densidade, encontram-se outras fontes que dialogam com este tema do carácter na liderança.
O The Oxford Character Project no seu relatório ‘Character and Global Leadership’ identificou mais de 1 000 artigos sobre liderança baseada em carácter em países de rendimento baixo e médio.
Um artigo no jornal Financial Times afirmava que, num mundo onde 39 % das competências-chave mudarão até 2030, sendo o «caráter um motor central da confiança»
Esses cruzamentos ajudam a ver que o que a McKinsey chama de ‘carácter’ está inserido num movimento mais amplo: uma exigência de liderança que não esquece a humanidade, o corpo, a alma, o impacto social — e não apenas os KPIs.
O que podemos retirar para reflexão
O verdadeiro teste do líder não está apenas no anúncio da visão, no discurso no auditório. Está no momento em que os holofotes se apagam, os recursos falham, o eleitor cobra e a estrutura trava. E aí o carácter aparece ou não.
Construir carácter exige auto-conhecimento, ritual de reflexão, assumir que liderar é mostrar vulnerabilidade, pedir ajuda, aprender com os erros.
Num país como Portugal, onde o sector público muitas vezes opera entre burocracia, moral coletiva reduzida e recursos escassos, este foco no ‘ser’ do líder torna-se ainda mais relevante.
Finalmente: o carácter não anula a execução. Ter carácter sem entregar resultados é demasiado pouco; ter só execução sem carácter é arriscado. A convergência dos dois é onde mora a excelência.




