Alguma vez tomou um antibiótico? Poucas serão as pessoas a ler este artigo que nunca o tenham feito. Este sucesso da biotecnologia moderna – que permitiu desenvolver e comercializar mais de 100 antibióticos diferentes desde que Alexander Fleming descobriu a penicilina há cerca de cem anos – mudou radicalmente a realidade demográfica desde o final da II Grande Guerra Mundial, altura em que começou a produção comercial. Em 1945, quando a guerra terminou, a população mundial rondava os 2,5 mil milhões – uns meros 77 anos depois atingimos os 8 mil milhões.
O acréscimo exponencial explica-se através de vários fatores, um dos quais é precisamente esta nova capacidade de combater infeções que antes eram frequentemente mortais. No entanto, estes avanços no conhecimento, embora tão significativos, revelaram-se insuficientes perante a versatilidade e aceleração adaptativa das bactérias patogénicas, o que criou a maior pandemia silenciosa deste novo século: a da resistência aos antibióticos.
Este exemplo mostra como a biotecnologia é moldada: precisa de se reinventar ao ritmo da própria vida enquanto responde às necessidades sociais, económicas e ambientais. Ou seja, é definida pela capacidade de rentabilizar os melhores avanços da engenharia, informática e outras construções humanas para interagir com a Natureza e extrair soluções à altura dos desafios com um fio condutor que é o da evolução permanente – tal como escrevia um filósofo da antiguidade, a mudança é a única constante da vida.
É fácil de ver onde têm sido concretizados os avanços mais notáveis da dimensão tecnológica nos últimos anos: desde o big data à inteligência artificial e da computação na nuvem aos robots autónomos, o mundo digital tornou-se tão real como o que vemos ao sair de casa e abriu as portas para a biotecnologia mostrar o que vale na agricultura, ambiente, saúde e bem-estar.
E já não era sem tempo. Sem essa capacidade tecnológica maciça seria impossível concretizar objetivos como o sequenciamento do genoma de todas as espécies do planeta, antecipar a atividade de moléculas recém-descobertas, criar plataformas de biologia sintética para produção de compostos que de outra forma seriam sobre extraídos da Natureza, ou ainda analisar sinais cerebrais de modo a detetar os padrões que antecipam esta ou aquela doença e abrem portas a terapêuticas mais precoces e direcionadas. Tornou-se viável extrair informação relevante de dados cada vez mais complexos e infindáveis. Olhar para os genomas já sequenciados para encontrar semelhanças e diferenças que se correlacionem com eficácia farmacológica de substâncias para animais ou com a resistência de plantas à seca, compreender o microbioma humano e desenvolver novas terapias com moléculas bioativas, modelar o microbioma do solo para estimular a produtividade – tudo isto não passava de um sonho até há bem pouco tempo. É até já praticável simular processos biotecnológicos com os designados gémeos digitais, assistentes virtuais que simulam condições processuais futuras. Todo o trabalho de integração, data mining, modelação e colaboração em rede, tornou-se não apenas possível, mas indispensável. A biotecnologia está em lua de mel com a bioinformática e vão multiplicar-se os algoritmos.
Para lá da fronteira do conhecimento estende-se a via láctea da incerteza firmemente incrustada no universo insondável onde mora tudo o que nem sabemos que não sabemos. Tal como nos jogos online onde se constroem civilizações a biotecnologia vai continuar a conquistar esses espaços desconhecidos, resgatá-los da sombra para dar novos mundos ao mundo. Por exemplo, é previsível que venha a coalescer com a dimensão da computação quântica – mas as formas que tal pode adquirir são profundamente incertas. E a seguir, o que virá? Aqui a bola de cristal fica enevoada e as previsões começam a lembrar desejos: terapias de precisão, captação de carbono à escala do clima, empoderamento do Sul global, sustentabilidade em tempo útil… É improvável que a biotecnologia possa ser tudo para todos, mas não nos podemos esquecer que «pelo sonho é que vamos».
Enquanto diretora de uma faculdade de biotecnologia, acredito que abrimos caminho para que os alunos possam sonhar. Sim, também aprendem microbiologia, bioengenharia e nutrição, mas o conhecimento precisa de caixilho. O sonho de um bem maior – maior que o ego, que o dinheiro e que o poder – é que pode gerar ao mesmo tempo o leme moral e a convicção que move as montanhas onde se escondiam as soluções. Tudo o resto decorre de algumas características que os investigadores conhecem: curiosidade, persistência, abertura, humildade e raciocínio crítico. Estes traços de caráter talvez não se ensinem facilmente, mas fazem parte do esforço para cultivar a mente que a sociedade pede ao mundo universitário em geral e que a evolução da biotecnologia em direção ao desconhecido torna essenciais.
No conceito de biotecnologia há um último aspeto que gostaria ainda de aprofundar: trata-se da sua relação conceptual íntima com a vida e o mundo natural. Sem entrar em considerações epistemológicas encontra-se apesar de tudo um dilema claro: queremos melhorar a Natureza ou aprender a segui-la? Sentimo-nos gestores de recursos ou parte integrante de um ecossistema? As respostas que escolhermos vão moldar o futuro da biotecnologia tanto ou mais que o primeiro antibiótico marcou o último meio século, com a diferença de que quaisquer desenvolvimentos se farão sentir junto dos doentes e dos saudáveis, dos vivos e dos que ainda não nasceram. Quem sabe no futuro a biotecnologia pode ajudar a nossa espécie a encontrar-se a si própria.
Este artigo foi publicado na edição de inverno da revista Líder
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