O lugar onde passei a minha infância, junto ao mar, era uma pacata vila, com três semáforos e uma estação de comboios. O meu mundo era o meu quarteirão, onde cresci a brincar na rua. A primeira fronteira que cruzei foi a passadeira que atravessei, sob o olhar atento do meu irmão, no caminho a pé até à escola preparatória. Hoje, a vila transformou-se num género de ‘El Dorado’, espremida pela pressão da construção e do estabelecimento de comunidades de estrangeiros, algo já tradicional na região, mas agora em esmagadora maioria. Sinais dos tempos, dirão uns, a culpa é das autarquias, dos políticos e dos expatriados, dirão outros.
Depois, vivi em Lisboa, numa experiência que me fez passar por três bairros distintos. Num dos lugares onde morei, pela altura dos Santos Populares, os vizinhos assavam sardinhas e secavam a roupa na rua, no verão dormia-se de porta aberta. Hoje, ouve-se o barulho das rodinhas dos trolleys num corrupio de check-in, check-out. É a globalização, dirão uns, a culpa é do instagram, dos ubers e das tostas de abacate, dirão outros.
A derradeira fonteira, onde me tornei imigrante e estrangeira residente, foi quando fui viver para o norte de Moçambique, entre a cidade de Pemba e o Ibo – uma das 27 ilhas que compõem o arquipélago das Quirimbas. Um lugar no fim do mundo, literalmente, sem luz elétrica, intocado, idílico. Hoje é uma zona de terrorismo e de guerra, com milhares de pessoas deslocadas e em situação de extrema vulnerabilidade. É a polarização, dirão uns, a culpa é do gás natural, do dinheiro e do Islão, dirão outros.
Todos somos estrangeiros em algum lugar – mesmo onde vimos a nascer e nos outros que procuramos para renascer e fazer do desconhecido uma nova casa. Antes de apontar o dedo, devemos virar o dedo para nós e fazer a pergunta: o que vemos? E se eu for o outro? Ou, como escreveu Mário de Sá Carneiro, e se não sou eu, nem sou o outro, mas qualquer coisa de intermédio? Olhar para os outros como sendo o todo e o nosso todo ser feito de cada um.
Todos somos estrangeiros em algum lugar, sobretudo dentro de nós, onde precisamos de todos os que se atravessam no nosso caminho. A irresistível vontade de culpar e de nos colocarmos num lugar de julgar, obriga a um movimento inflexo e ao reflexo do outro em nós. Ninguém escolhe seguir pelo caminho das pedras, e dar a mão a quem o atravessa não é para se ganhar o céu, mas sim para sentir o fulgor do que é estar vivo nesta Terra.
Este editorial foi publicado na edição nº 29 da revista Líder, sob o tema Incluir. Subscreva a Revista Líder aqui.