Antes de falecer, Pedro Queiróz Pereira afirmou perante o Ministério Público: «Ricardo Salgado tem características boas e más. Entre as boas: é uma pessoa extraordinariamente trabalhadora; entre as más, é um ambicioso desmedido, capaz de matar o pai e a mãe, e um mentiroso compulsivo. Defino-o como uma pessoa que diz determinadas coisas e que quer convencer o interlocutor de que 2 + 2 são 5».
A extraordinária capacidade de trabalho não é, por certo, a única virtude de Ricardo Salgado. Mas nenhuma das suas qualidades oculta o lado mais sombrio que, alegadamente, carateriza o seu perfil e a sua atuação na liderança do BES. O caso ilustra bem como devemos ser cautos quando avaliamos e escolhemos líderes. Com alguma frequência, subestimamos o lado sinistro dos mesmos para nos focarmos nas suas múltiplas forças e virtudes. Por vezes, essa é a forma mais ou menos inconsciente de nos livrarmos do peso na consciência: colocados perante evidência que nos revela a perversidade de um líder pelo qual estamos enamorados, enfatizamos o seu lado brilhante e assim racionalizamos o nosso apego a esse líder.
É essa forma de (querer) ver que suporta argumentos racionalizadores como: “é corrupto, mas faz obra”, “tem esse lado sombrio, mas quem não o tem?!”, “é perigoso, mas diz as duas verdades”, ou “Jesus era amigo de pecadores”. Este tipo de enviesamentos pode sair-nos muito caro.
Na hora da verdade, a liderança sombria descarta-se dos apoiantes que deixaram de lhe ser úteis. Para se proteger, alija responsabilidades nos acólitos ou nos que, passivamente, lhe obedecerem. Veja-se o rol de antigos acólitos de Trump que caíram na armadilha, se envolveram em manigâncias e ficaram em apuros. Os efeitos perversos das lideranças sombrias não recaem apenas sobre os indivíduos – podem também destruir equipas e organizações. Al Dunlap (1937-2019) era alcunhado de motosserra – epíteto resultante da sua capacidade de cortar a direito e levar a cabo despedimentos em massa, enquanto se abotoava com benesses de milhões. Foi admirado enquanto obteve lucros. Mas a sua arrogância obstinada, narcisista e desrespeitadora, acompanhada de fraudes, arruinou empresas e a sua própria carreira. Melhor fora que quem o escolheu tivesse prestasse atenção não apenas aos resultados financeiros – mas também à forma (sinistra) como esses resultados eram alcançados.
As lições a extrair destes casos são inúmeras, das quais saliento três. Primeira: a liderança destrutiva requer a participação, ativa ou passiva, de seguidores. Portanto, o nosso desejo de melhores lideranças deve ser acompanhado do desenvolvimento de liderados mais equipados para atuar em prol de organizações mais sustentáveis. Esse é um desafio que as escolas de negócios também devem prosseguir. Segunda lição: quando selecionamos líderes, devemos proteger-nos do deslumbramento e quase idolatria que nos suscitam alguns dos mais bem-sucedidos e famosos. Algumas pessoas dotadas de grandes qualidades (como a eloquência, a autoconfiança, a capacidade de arriscar e inovar, a determinação e a ousadia) são também caracterizadas por elevados níveis de uma tríade perigosa: narcisismo, maquiavelismo e psicopatia. Persuadem e manipulam. Instrumentalizam e descartam quem deixa de lhes ser útil. A evidência obtida ao longo de vinte anos de investigação sobre a tríade sombria mostrou o seguinte: “Tanto os executivos bem-sucedidos como os descarrilados eram… brilhantes, motivados, trabalhadores árduos, socialmente competentes; identificados desde cedo como tendo elevado potencial; com uma trajetória de sucesso”.
A terceira lição é mais complexa e multifacetada. Recomenda que as organizações se protejam destas personalidades. Como? Impedindo o seu ingresso na organização através de mecanismos de seleção mais apurados. Suscitando culturas organizacionais que premeiem o espírito crítico. E criando mecanismos institucionais de governança que impeçam os abusos. Naturalmente, estas vias prudenciais podem ser insuficientes quando a tríade sombria está nos alicerces fundacionais da organização. Daí decorre a necessidade de reguladores fortes e desconfiados por natureza, e de meios de comunicação social igualmente vigorosos e verdadeiramente independentes.
PS. Enquanto escrevo este texto, desconheço o resultado da eleição presidencial nos EUA. Assusta-me a ideia de Trump (o seu ex-chefe de gabinete, John Kelly, acusa-o de ser fascista) vencer. O magnata e ex-presidente é autoconfiante, profundamente determinado, ousado e corajoso. Recuperou, com enorme tenacidade, de várias falências. Mas o potencial destrutivo da sua liderança é enorme – não apesar dessas qualidades, mas por causa A idolatria de que é alvo tem contribuído para normalizar a desonestidade, a desvergonha, a indecência, o ódio, as trapalhadas e o desrespeito pelos princípios da civilidade e da democracia. Espero que muitos dos seus milhões de apoiantes não venham a provar o fel.

