O silêncio é multifacetado. Pode ser bênção ou maldição. Permite-nos dialogar connosco e com os outros. Há mais de uma década, fui convidado para ministrar um curso de formação, em liderança, a diretores de escolas católicas de todo o país. Local: Fátima. Porque o curso começava de manhãzinha, viajei no dia anterior e pernoitei no alojamento que me concederam: uma casa de retiros contígua ao recinto do santuário. Cheguei noite adentro. Entrado no quarto, deparei-me com paredes despidas, uma cama e uma singeleza notável. Não havia aparelhos de TV ou rádio. O asseio e a simplicidade dominavam o “recheio”. A sensação de perda de contacto com o mundo exterior gerou-me desconforto e, até, alguma ânsia. Mas havia beleza naquela frugalidade. À medida que o silêncio me entrava na mente, fui-me sentindo aliviado. Arrumei a mala, lavei os dentes e saí para caminhar pelo recinto. Senti uma enorme paz – a do silêncio.
Num mundo cacofónico, precisamos de silêncio – para descansar e refletir. Para ler. Contemplar a natureza. Escutar os pássaros. Passear entre o arvoredo. Mas também precisamos desse silêncio para refletirmos, dialogarmos com a nossa consciência e desenvolvermos a coragem … para não nos calarmos perante o que é inaceitável! Refiro-me aos perigos do silêncio nas organizações.
As pessoas calam-se por várias razões. Por medo de punição ou retaliação provinda da chefia. Para não ferir relacionamentos. Para não levar outra pessoa a “perder a face”. Por temer ser rotulado como “ovelha ranhosa”, “fraco jogador de equipa”, ou “sempre do contra”. Porque se é introvertido ou pouco autoconfiante. Ou porque se sente que expressar voz é inútil e não fará qualquer diferença na situação em curso. Há também quem se silencie porque, simplesmente, está descomprometido com o trabalho, a equipa ou a organização. Por oportunismo. Para esconder, instrumentalmente, ideias, informação ou conhecimento relevantes. Por simples comodismo.
Nem todos estes silêncios têm a mesma gravidade. Os mais problemáticos são, porventura, os que radicam no medo de “abrir o bico” perante decisões desastrosas, perigosas, ilegais ou não-éticas. São inúmeros os escândalos organizacionais que foram sendo “incubados”, ao longo de anos, por um clima de medo, frequentemente instigado pelas lideranças. O caso recente mais emblemático é a Boeing.
O silêncio de funcionários, incluindo engenheiros, resultante do medo de retaliação contribuiu para tragédias – fruto de erros na construção do Boeing 737 Max. A empresa, pressionada pelas circunstâncias e pelas pressões do regulador, tem instituído políticas formais de promoção de uma cultura de speak up. Mas as mudanças culturais são lentas. Acresce o fenómeno “gato escaldado de água fria sem medo”. São necessários anos para que as pessoas fiquem realmente convencidas de que as novas narrativas de gestão orientadas para a expressão de voz correspondem a um desejo genuíno de escutar opiniões e verdades desconfortáveis.
A conduta das lideranças é crucial. Frequentemente, manter o seu próprio silêncio é a melhor forma de uma liderança criar espaço para que os liderados não se remetam ao silêncio e antes expressem a sua voz. Se uma liderança deseja genuinamente estimular a expressão de voz dos liderados, é conveniente remeter-se ao silêncio até que as pessoas se expressem.
Não com o intuito de vir a “desancar” em quem lhe diz o que não quer ouvir – mas para que se gere um clima de discussão franca que contribua para melhores decisões. Jim Detert, investigador da expressão de voz e da coragem nas organizações, recomendou às lideranças: “Se ninguém fala numa reunião, não assuma que todos estão de acordo – procure ativamente pontos de vista divergentes. E agende conversas frequentes com as pessoas para que elas partilhem ideias consigo. (…) Devemos consciencializarmo-nos de que se não encorajamos as pessoas a expressar voz, estamos a desencorajá-las.”
As lideranças devem fazer uso do seu próprio silêncio para concederem espaço à expressão de voz dos liderados e, desse modo, tomar melhores decisões. O silêncio é também fundamental para que as lideranças descansem e reflitam. Para dialogarem com a própria consciência e ponderarem as consequências económicas e éticas das suas decisões. Para, no seio do atual caldo social e político perigoso, no qual a mentira descarada é tomada como sintoma de força, terem a coragem de fazerem bem – mas também de fazerem o bem.
Manfred Kets de Vries, reputado académico, consultor e coach de executivos, escreveu em The Daily Perils of Executive Life: “Nascemos sozinhos e morreremos sozinhos. Infelizmente, num esforço desesperado para lidar com a solidão, preenchemos as nossas mentes com atividades ruidosas que abafem o silêncio dessa solidão”. Há quem as preencha com a mentira e a pós-verdade – para não deixar espaço à entrada da verdade desconfortável. Em suma: precisamos de mais silêncio para conceder espaço a que se fale mais e melhor!
Este artigo foi publicado na edição nº 27 da revista Líder, sob o tema Humanity is Calling – Be Silent, Decide with Truth. Subscreva a Revista Líder aqui.