“Quem sou na realidade, eu, eu eu? – pensava Sófia Ossipovna. – Aquela pequena moncosa que tinha medo do pai e da avó, ou aquela gorda irritadiça com galões na gola, ou esta aqui, judia piolhosa?”
Estou a ler Vida e Destino, de Vassili Grossman (Dom Quixote), onde encontrei a passagem anterior. É um livro monumental que nos faz tropeçar em questões profundas, como a identidade. Grossman escreveu um livro que fala da URSS estalinista com grande realismo, mostrando o heroísmo das pessoas comuns sem propensões hagiográficas. Pelo contrário: com um olhar realista e crítico. Precisamos de ler livros como este para abandonarmos simplificações perigosas e maniqueístas em torno da identidade.
E a esse propósito, lembrei-me de Shtisel. Numa altura em que a identidade se tornou uma coisa séria – tão séria que não admite brincadeiras – esta série desafia os clichés. Os judeus têm sido perseguidos ao longo da história mas esta série israelita trata os judeus ultra-ortodoxos com um olhar irónico e profundamente humano. A identidade pode ser colocada no centro do universo e no caso dos judeus serviu para que fossem perseguidos por tudo e mais alguma coisa. Tanto quanto sei não sou judeu mas vá-se lá saber; afinal a identidade é uma noção enganadora. Em todo o caso, senti-me muito próximo deste grupo e de tudo aquilo que o faz tão contraditório porque tão humano. Ri-me com eles, ri-me deles e ganhei por eles uma proximidade que obviamente não tinha.
Numa altura em que a identidade é usada como arma de arremesso, ver Shtisel é uma maneira de lembrar que toda a catalogação identitária é estreita e perigosa. Um mundo em que se colocam as pessoas em caixas é um mundo onde o outro é facilmente desumanizado. Mais fácil o processo se torna quando se se mete cada um em caixas progressivamente mais pequenas em nome de lógicas interseccionais. Shitsel é uma convocatória para pensarmos.
Por Miguel Pina e Cunha, Diretor da revista Líder