Foi aos dezasseis anos que me disseram que a vida ia acabar, disseram como quem lê um despacho, sem emoção nem pausa, e nem sequer me perguntaram se queria ouvir, três meses, repetiram, três meses e não mais, e eu, que ainda mal sabia medir a vida em meses, olhei para a janela não para ver se estava sol ou chuva mas para perceber se o mundo também tinha recebido a notícia, se as árvores, as nuvens e os pássaros sabiam, e como continuavam indiferentes percebi que talvez a morte, quando chega anunciada, não nos leve logo o corpo, rouba primeiro a certeza dos dias, depois o descanso das noites, e só depois, se conseguir, o que sobra, mas até lá a alma já aprendeu a resistir.
Não sobrevivi, vivi, e não o digo como quem levanta bandeiras, digo-o porque entre os que ficaram e os que partiram eu fui ficando, e ficando vi nascer Afonso e Leonor, dois milagres que a vida me deu como quem rasga e reescreve uma sentença, e no entanto ficar não me poupou a ver partir, e quando digo ver não é apenas assistir, é carregar na carne a memória do que a carne dos outros se torna quando a doença decide morar nela.
Nenhuma família é imune, todas sabem ou saberão o que é a frieza de uma sala de espera numa ala oncológica, as cadeiras alinhadas, o cheiro a desinfetante, o tom monocórdico do médico que recita os efeitos secundários como quem já os sabe de cor. Entrar ali é como entrar num porto onde nem todos os barcos regressam, e sabe-se, e sente-se, que talvez não voltemos a ver certos rostos, e eles sabem o mesmo sobre nós, e há nos olhares um pacto mudo que mistura medo, esperança e, por vezes, uma paz estranha.
O cancro continuará a matar, e não me iludo, mas continuará também a ser vencido, e as vitórias nem sempre são as que se contam em números, há vitórias no cabelo que volta a nascer como relva nova, na fome que regressa depois de meses de ausência, no riso que ainda se infiltra entre dois exames. Há quem leve a quimioterapia como uma guerra que precisa de vencer mesmo quando o corpo já não colabora e é o espírito, teimoso, que morde o tempo que resta. Há também quem, sem diagnóstico de esperança, arrume gavetas e afectos, se despeça onde há despedidas por fazer, abrace como se os braços fossem eternos e trate cada instante como milagre, porque às vezes, não sempre mas às vezes, a vida devolve em triplo o que lhe foi dado.
O medo pode nascer de uma dor pequena, uma moinha quase sem importância, mas o rastreio, nesse caso, é mais do que precaução, é cuidado com o tempo que se quer viver, e mesmo sem dor, quando já se viveu meia vida, é hora de fazê-lo na mesma, não para acrescentar dias ao calendário mas para viver os que houver de forma inteira, sem concessões.
A mim disseram-me que todos os minutos contavam, e desde então fui eu quem os contou, um a um, e decidi o que fazer com cada um deles, porque se a vida é uma batalha desigual, ao menos que seja a nossa, e não entregue à frieza dos números, e talvez seja por isso que regresso à janela e vejo as nuvens ainda lá, indiferentes, cumprindo os seus dias, como se me lembrassem que é isso mesmo que eu devo continuar a fazer.
Nota: Este texto é uma homenagem a todas as famílias que já passaram – e continuam a passar – pela travessia dura da doença oncológica. Uma lembrança de que, mesmo no meio do medo e da incerteza, a vida pode sempre encontrar formas de resistir, florescer e tocar-nos de modo inteiro.

