A conversa estava já marcada para acontecer antes da guerra, mas foi já durante a invasão da Rússia à Ucrânia que a Líder falou com Pedro Conceição, o português que lidera nas Nações Unidas o Índice de Desenvolvimento Humano (PNUD). Falar de Desenvolvimento Humano neste momento histórico é ainda mais relevante, estando as Nações Unidas empenhadas fortemente na prossecução da paz naquela região do globo. O Desenvolvimento Humano vai muito além dos aspetos do rendimento das populações, as assimetrias que vemos no Mundo, apesar de serem menores, têm merecido especial atenção por parte das Nações Unidas. Pela primeira vez desde que há dados, a Pandemia veio quebrar o Índice de Desenvolvimento Humano, as coisas ficaram piores. Pedro Conceição espera um dia voltar a Portugal, o seu país, que considera ter feito evoluções significativas no âmbito do Desenvolvimento Humano.
Por: Alice J. Neves | Fotos: ONU
O que significa para as Nações Unidas, o Desenvolvimento Humano?
O Desenvolvimento Humano é uma ideia que nos convida a olhar para a forma como entendemos o progresso (económico, social, etc.) e também para a forma como fazemos a avaliação de políticas ou outras intervenções. Muitas vezes, entendemos o progresso ou fazemos a avaliação de políticas olhando para o impacto que isso tem no rendimento das pessoas ou dos países. É por isso que se enfatiza muito a forma como as economias estão a crescer ou não. O que o Desenvolvimento Humano nos diz é que as pessoas terem rendimento é essencial, mas isso não define a forma como devemos olhar e definir o progresso.
Então o que nos diz o Desenvolvimento Humano?
O Desenvolvimento Humano diz-nos que devemos de ter uma perspetiva mais abrangente daquilo que é o bem-estar (de pessoas individuais e o bem-estar social) e também que, para além do bem-estar, é importante olhar para aquilo que, se designa por agência. Para falarmos de bem-estar, além do rendimento interessa também ver se as pessoas têm saúde e acesso à Educação. Agência significa que as pessoas podem ter valores, subscrever ideias que as mobilizam a atuar, a fazer escolhas que podem não estar relacionadas diretamente com uma melhoria no seu bem-estar. Por exemplo, há pessoas que podem estar empenhadas em combater as alterações climáticas mesmo que isso não se reflita diretamente numa melhoria do seu bem-estar individual e, muitas vezes, até assumem essas posições com prejuízo do seu bem-estar individual. Esta ideia de que as pessoas também têm agência para além da importância do bem-estar, é o segundo pilar do Desenvolvimento Humano. O primeiro pilar do Desenvolvimento Humano é a perspetiva abrangente de bem-estar e o segundo pilar é a ideia de agência.
Quais são atualmente as principais assimetrias que podemos identificar quando falamos de Desenvolvimento Humano?
Em 2019, publicámos um relatório que olhou para as desigualdades em várias dimensões do Desenvolvimento Humano. Uma das coisas que identificámos foi que havia, por um lado, uma redução das assimetrias em alguns aspetos do Desenvolvimento Humano – aspetos designados como básicos (pobreza extrema, taxa de mortalidade infantil, participação escolar no ensino primário) – resultado de políticas de sucesso de cooperação internacional para ajuda ao desenvolvimento, mas, ao mesmo tempo, identificámos assimetrias que estavam a aumentar em aspetos ligados à qualidade do ensino em níveis mais elevados, indicadores de saúde que não estavam ligados apenas à mortalidade infantil, mas à qualidade de vida de pessoas em idade mais avançada, acesso a tecnologias, etc. Portanto, havia uma série de aspetos importantes do ponto de vista do Desenvolvimento Humano em que as assimetrias estavam a aumentar. É uma perspetiva mais complexa, mas que nos ajuda a perceber muitas das ansiedades com que as pessoas vivem atualmente e as preocupações que têm relativamente a essas assimetrias.
Como apuram o chamado Índice de Desenvolvimento Humano?
O índice mede o que está ligado à ideia de bem-estar. E as três variáveis que consideramos no índice são: o PIB, a esperança média de vida à nascença (para medir a saúde) e os indicadores de escolaridade (para medir aspetos ligados a educação). Portanto, é um índice compósito que tenta caracterizar quantitativamente o nível de bem-estar das sociedades, considerando o rendimento, mas indo para além dos rendimentos, considerando aspetos relacionados com a saúde e a educação.
Acha que estamos mais ou menos desenvolvidos?
Se olharmos para os dados, mostram que desde que começámos a publicar, em 1990, tem havido uma melhoria. Tem sido um crescimento particularmente rápido nalgumas regiões que tinham um nível de Desenvolvimento Humano mais baixo (por exemplo na Ásia e África), mas tem havido um progresso em todas as regiões do Mundo e, praticamente, em todos os países. Houve uma desaceleração do crescimento na altura da crise económica de 2008. Mas o que identificámos recentemente, foi que com a COVID-19 houve pela primeira vez desde que temos dados, uma quebra no Índice de Desenvolvimento Humano. No entanto, existem ainda grandes assimetrias quando olhamos para a Ásia e para a Europa. Há diferenças grandes entre as regiões, sendo também importante olhar para as diferenças que existem dentro dos países porque o Índice de Desenvolvimento Humano olha para indicadores que representam a média do que acontece nestas três dimensões (rendimento, saúde e educação).
E qual tem sido o papel das Nações Unidas?
As Nações Unidas são uma organização que tem três pilares: um pilar que é o do desenvolvimento, um pilar associado à paz e outro associado aos direitos humanos. Portanto, todos estes elementos levam a que as Nações Unidas tenham um papel importante no apoio aos governos e às populações. Eu diria que as Nações Unidas não são um agente determinante, mas são um agente que pode ajudar os Estados-membros, governos e populações a tomar as tais decisões que levam a um aumento do Desenvolvimento Humano. A responsabilidade central está com os governos e com as pessoas que vivem nos diferentes países.
E que mecanismos podem ser postos em prática para promover essa ajuda?
As Nações Unidas têm o papel de trazer as pessoas e os governos a olharem para desafios que são comuns a todos os governos (alterações climáticas, por exemplo). Existem convenções em que os países membros se reúnem e assumem compromissos para tentar lidar com determinados problemas. Discute-se se temos feito o suficiente ou não, acho que não, sabemos que não, mas pelo menos as Nações Unidas são um fórum que convida os países a terem essas discussões e a chegarem a esses acordos. As alterações climáticas são um exemplo, mas há muitos outros: desde a forma como a aviação é regulada, a acordos sobre a forma como os oceanos são governados. Temos também intervenções no sentido de ajudar a manter a paz através das forças de operações de paz em que a intervenção é feita a pedido dos governos; temos a Comissão dos Direitos Humanos que reúne para tentar perceber de que forma é que está a decorrer a implementação da garantia dos Direitos Humanos em todo o Mundo. Do lado do Desenvolvimento Humano eu diria que há o papel de agências como o PNUD, UNICEF, e de muitas outras que têm um papel relevante em setores específicos olhando, por exemplo, para crianças, campanhas de vacinação, campanhas de educação. No caso do PNDU, temos investido cada vez mais na melhoria da capacidade dos governos para darem respostas às alterações climáticas e aos desafios ambientais, ao mesmo tempo que os ajudamos a combater a pobreza. Por isso, há aspetos mais operacionais que as Nações Unidas podem assegurar.
Ajuda externa é a melhor maneira de ajudar as nações que ficam para trás?
A ideia de ajuda externa está associada a um contexto muito específico em que existiam diferenças muito grandes entre os níveis de rendimento médio de um grupo de países relativamente pequeno, que era bastante mais rico, e o resto do Mundo. Essas diferenças não acabaram, mas têm vindo a esbater-se. Em 1980, havia países que, medidos pelo ponto de vista do rendimento per capita, eram muito pobres e que atualmente têm rendimentos por pessoa muito mais elevados. Portanto, houve uma convergência. Embora continue a existirem países que estão em condições que precisam de ajuda porque os rendimentos são ainda muito baixos. Por outro lado, acho que há uma maior preocupação com estes problemas que são comuns, como as alterações climáticas, que têm de ser olhados de forma comum. Diria que a ajuda ao desenvolvimento continua a ser importante em contextos muito específicos, por exemplo emergências humanitárias, mas que a longo prazo, e como motor essencial do desenvolvimento dos países, isso caberá sempre aos governos e às populações conseguirem elevar os países nesse sentido. As Nações Unidas têm um papel, mas organizações internacionais como os bancos de desenvolvimento também são importantes, o papel do investimento público é importante, o papel dos investidores privados é essencial. Uma função importante das Nações Unidas e destas organizações internacionais é criarem as condições para que investidores privados sintam que podem investir nestes países e isso passa mais uma vez pela Educação, pela Saúde, e por dar garantias de que há condições institucionais para que o investimento seja feito com segurança.
Quais as principais dificuldades que se enfrentam quando se quer melhorar o Desenvolvimento Humano?
Dificuldades são tentar mostrar às pessoas, aos governos e ao público em geral, decisores no setor privado, líderes da sociedade civil, que esta ideia de Desenvolvimento Humano é importante para nos ajudar a ver o Mundo de uma perspetiva diferente e que nos dê também razões para acreditar nas pessoas, fazendo propostas concretas sobre a forma como alguns problemas podem ser resolvidos. É uma dificuldade porque é uma perspetiva de longo prazo que olha para problemas talvez um pouco mais fundamentais ou estratégicos. No dia-a-dia, as pressões são mais para resolver os problemas que preocupam as pessoas no imediato.
Que grandes momentos já viveu ao serviço das Nações Unidas?
Muitos, mas talvez aquela atividade que me deu mais gratificação não foi nas minhas funções atuais, mas sim durante a epidemia do ébola na África Ocidental em que tive a responsabilidade de organizar a forma como se fazia o pagamento das pessoas encarregadas de prestar cuidados de saúde às populações afetadas da Guiné, Guiné-Conacri, Serra Leoa, os sítios onde havia esta epidemia. Era uma tarefa complicada numa altura de pânico em que havia muita gente a tentar ajudar as populações. Era um problema muito complicado, mas conseguimos (eu liderei esse projeto) pôr em marcha um sistema de pagamento a todos os encarregados de prestar cuidados de saúde (fossem internacionais ou locais) e fazê-lo de uma maneira em que ajudámos as instituições locais em cada país a terem a sua liderança. Portanto, apoiámos esse esforço e não só foi importante na altura no combate à pandemia, mas foi uma coisa que ficou. Ainda hoje, aqueles sistemas que foram postos em prática são hoje utilizados para fazer os pagamentos às pessoas com responsabilidade pela saúde nestes países. Acho que foi gratificante porque ajudou num contexto de emergência, tendo feito uma diferença imediata, mas também mostra como, muitas vezes, a forma como se pensa e como se fazem estas intervenções em contextos de emergência podem deixar legados que perduram.
Como se descreve enquanto líder?
Fui aprendendo, olhando para outras pessoas com perfis de líder muito diferentes. Observando, e vendo como as pessoas também reagem a incentivos e a formas de motivar, mas aprendi que, pelo menos comigo, a forma que funciona melhor é dar responsabilidade e autonomia às pessoas para desenvolverem o seu trabalho. Não digo que funcione em todos os contextos, mas especialmente nas funções que tenho agora, esse é o meu estilo de liderança: tentar dar uma indicação daquilo que queremos atingir como equipa e depois dar autonomia para desenvolverem o seu trabalho, corrigindo quando há necessidade. Não acredito que as pessoas dão o seu melhor quando estão sujeitas a um contexto de competição constante, especialmente entre elas próprias. Penso que o desempenho é melhor quando as pessoas sentem que têm alguma segurança, apoio, autonomia, espaço e tempo para desenvolverem o seu trabalho.
Como olha para as lideranças atuais?
Não posso generalizar, há lideranças muito diferentes em contextos muito diferentes. Mas a liderança que tenho agora aqui no PNUD vai muito nesse sentido. Há uma sintonia entre o estilo de liderança que eu acho que é importante para a minha equipa, com o estilo de liderança que existe na organização no seu todo. Relativamente a Portugal, tenho uma perspetiva que é capaz de ser diferente das outras pessoas que vivem no País porque estou fora há muito tempo e vou a Portugal só uma vez por ano; com este distanciamento e com a forma como olho para os problemas que as populações em tantas partes do Mundo enfrentam, acho que Portugal é um país que tem feito imensos e rápidos progressos, especialmente se tivermos em conta esta ideia de Desenvolvimento Humano, que olha não só para o desempenho da Economia, mas tem uma perspetiva mais abrangente daquilo que é importante para as sociedades (Educação, Saúde etc.). Portanto, acho que em geral as lideranças devem ter sido boas para estarmos onde estamos. Claro que há muito mais para fazer e há sempre problemas complicados para resolver, mas tirando esta perspetiva
de longo prazo, acho que tem havido um progresso enorme
em Portugal.
Como é a sua relação com António Guterres?
Não é uma relação muito frequente, não trabalho diretamente com o Secretário-geral que é responsável por toda a organização. Não há muitas oportunidades de interagir, mas tive ocasião de lhe fazer briefings relativamente aos relatórios que fazemos aqui sobre o Desenvolvimento Humano e foi sempre uma pessoa muito impressionante pelo conhecimento que tem dos assuntos, pela profundidade com que analisa os problemas. Respeito e admiro.
Gostaria de regressar a Portugal?
Gostaria.
Como avalia os atuais acontecimentos na Ucrânia?
Diria, em primeiro lugar, que isto está relacionado com um relatório que publicámos sobre o conceito de segurança humana. Penso que nos confrontávamos com um contexto em que quase de forma universal havia alguma ansiedade relativamente ao futuro e falta de confiança entre as pessoas. Isso foi uma das coisas que o nosso relatório identificou. Há uma dificuldade para fazer acordos em assuntos que nos condicionam a todos. Diria que é mais uma manifestação em que esta falta de confiança assumiu proporções mais gravosas e preocupantes, relativamente às quais é difícil prever quais serão as implicações.
Vê este conflito como uma alteração da geopolítica mundial?
Como digo, acho que as divisões que existiam já se vinham refletindo de forma consistente e, por isso, assumiram agora outra gravidade e escalaram a outro patamar de preocupação, mas no fundo. As Nações Unidas estão muito condicionadas pelos seus membros, os países, relativamente àquilo que podem fazer. Aquilo que nos compete, e que o Secretário-geral tem feito, é um apelo constante, sistemático à paz, e trazer à atenção de todos a importância destes desafios comuns que tornam o Mundo cada vez mais perigoso e dividido se não conseguirmos lidar com elas.
Esta entrevista foi publicada na edição de primavera da revista Líder
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