“O mundo das profissões corresponde a uma multiplicidade de formas de trabalhar que ultrapassa a reificação, o próprio artificialismo dos objetos que se constroem.” Falar de Direito a Desligar sem trazer para a discussão o que significa trabalhar não seria justo, uma vez que a ideia de estar sempre conectado implica de forma direta o mundo do trabalho. Por isso, falámos com Margarida Amaral, doutorada em Filosofia Contemporânea, para entendermos o significado da dimensão do trabalho e do tempo nas nossas vidas ativas, ancorados no pensamento da também filósofa Hannah Arendt.
O trabalho para Hannah Arendt corresponde ao que hoje podemos encontrar no mundo das profissões?
O “trabalho” é um conceito muito específico em Hannah Arendt. Significa a dimensão da vita ativa que depende da condição humana da mundanidade, concretizando-se em isolamento, obedecendo a uma previsibilidade e consumando-se na artificialidade dos objetos criados pelo Homem. Deste modo, o sujeito do trabalho é o homo faber, isto é, um ser que constrói, reifica e edifica um mundo humano de natureza artificial, sem que, enquanto tal, estabeleça propriamente uma relação com os outros. Assim, este conceito não corresponde propriamente àquilo que na atualidade podemos designar como “mundo das profissões”, o qual, sintetizando, corresponde a uma multiplicidade de formas de trabalhar que ultrapassa a reificação, o próprio artificialismo dos objetos que se constroem. Além disso, o contexto profissional atual é cada vez mais dinâmico, tornando imprevisível como será o mundo das profissões daqui a uns anos. Ora, o “trabalho” em Hannah Arendt é, de um modo geral, uma atividade marcada pela previsibilidade – o artífice fabrica com base num modelo cujo fim é a fabricação de um objeto. Finalmente, em relação ao isolamento do homo faber, grande parte das profissões atuais supõe o desenvolvimento contínuo de competências relacionais, consumadas em grande medida em termos digitais. Se este universo está fundado num verdadeiro encontro entre o eu e o outro, respeitando a pluralidade que nos é própria, será certamente um aspeto que merece uma reflexão mais profunda…
Trabalhar uma vida inteira ou dias a fio sem tempo para refletir e/ ou descansar seria algo que Hannah Arendt considerasse válido, humano?
Hannah Arendt não se refere diretamente à relação entre o descanso e o trabalho, mas denuncia a ilusão do tempo livre inerente ao animal laborans. Contrariamente ao homo faber, o animal laborans circunscreve a sua atuação ao ciclo de produção e consumo. Ora, ao contrário de Marx, que concebe haver um tempo do processo de produção que é superior ao tempo dedicado ao trabalho, permitindo assim que o trabalhador tenha tempo livre, Hannah Arendt denuncia o perigo que corremos com a valorização dominante do labor.
Aquilo que a autora denomina de “vitória do animal laborans” remete justamente para o perigo de nos termos tornado essencialmente consumidores e, assim, o nosso tempo livre não o é verdadeiramente, uma vez que se circunscreve ao ciclo voraz de produção e consumo.
Neste sentido, é possível afirmar que o descanso não existe verdadeiramente nas sociedades atuais. Será isso humano? Na verdade, não, já que embora cada um de nós seja um animal laborans enquanto possuir uma dimensão vital, isto é, enquanto for um ser vivo, a Humanidade é bem mais do que isso. Para a autora, é trabalho, é ação (ou participação política) e é pensamento – essa possibilidade que todos temos de “parar para pensar”, suspender as nossas atividades quotidianas para nos dedicarmos à reflexão.
Trabalho e Labor são conceitos distintos. Como os podemos ver nos tempos que correm?
O trabalho obedece à condição humana da mundanidade, enquanto o labor depende da condição humana da vida. Hannah Arendt denuncia, como já referi, a “vitória do animal laborans” reconhecendo que, entre as três dimensões da vita ativa – labor, trabalho e ação – os indivíduos se encontram reduzidos à vida e à satisfação de necessidades. Esta satisfação alargou-se ao ponto de incluir não apenas necessidades verdadeiramente vitais, mas ainda “necessidades” supérfluas que, entretanto, são já entendidas como vitais. A este nível, somos levados a reconhecer a atualidade do pensamento da autora. Num mundo cada vez mais acelerado e no qual os indivíduos se encontram sobretudo centrados na satisfação das suas necessidades, o ciclo de produção e consumo é imparável e progressivamente mais voraz. A produção e o consumismo avassaladores a que assistimos na atualidade alimentam-se mutuamente, criando dificuldades à autenticidade da vida do Homem no mundo. Na verdade, este ciclo interfere com a nossa vivência do tempo, com as relações interpessoais e com o próprio equilíbrio da Natureza.
Trabalho e Poesia são conciliáveis quando pensamos nesta última com a dimensão do cuidado que devemos ter com a Natureza e o mundo em geral?
Trabalho e poesia (poiesis), entendida como equilíbrio entre a construção e o cuidado, têm de ser conciliados. O trabalho tem de visar tornar o mundo num lugar habitável, numa verdadeira habitação. Ora, isto só é possível compreendendo o habitar num sentido poético. Martin Heidegger cita Hölderlin a este respeito – “Poeticamente o Homem habita”, porque justamente só é possível habitar poeticamente. Segundo Heidegger, os gregos, ao contrário dos romanos, construíam a partir de uma relação de não provocação, de cuidado com a Natureza. Pelo contrário, Hannah Arendt sugere que, embora os gregos cultivassem um “amor pela beleza” no que se refere à apreciação, os romanos teriam associado o cuidado (colere) às suas criações. Independentemente da origem, é fundamental sublinhar que o trabalho, muito embora possa violentar a Natureza, não visa a sua destruição pura e simples. Tornar o mundo num lugar habitável para o Homem implica encontrar um equilíbrio entre a violência inerente à transformação da Natureza pelo trabalho e o próprio mundo humano que se edifica a partir desta violência, mas que não consiste numa mera destruição. A procura deste equilíbrio tem-se revelado desafiante para as sociedades contemporâneas.
Este artigo foi publicado na edição de inverno da revista Líder.
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