Louco ou mau? Esta é a questão que impera nas investigações criminais e nos tribunais para que, com base na resposta, se passe à sentença de um criminoso. Na Imprensa e nas redes sociais surge a revolta, o desejo de que os criminosos sejam castigados, e rapidamente se fazem julgamentos e se atribuem rótulos. “Monstro”, “Psicopata” ou “Doente mental” são alguns dos termos usados para definir assassinos, violadores ou agressores. Em conversa com Kerry Daynes, psicóloga forense no Reino Unido e autora do livro “Causas Ocultas”, a Líder desmistificou essa linha ténue entre a loucura e o crime.
Desmistificar a doença mental
A verdade é que nem todos os criminosos têm distúrbios mentais, e nem todos os que sofrem desse tipo de doenças cometem crimes.
É importante fazer esta distinção, já que vivemos numa altura em que as duas premissas são facilmente confundidas. Além disso, a autora sublinha: “Nem devíamos chamar às doenças ‘distúrbios mentais’, já que não há nada de errado em ter reações aos desafios que a vida nos coloca.”
A doença mental, cada vez mais, tem vindo a tornar-se um assunto não tabu na sociedade. A depressão, ansiedade ou stress pós-traumático são hoje temas que entraram no nosso dia-a-dia, especialmente desde que figuras públicas falam abertamente sobre estas questões, familiarizando o público geral com a temática.
Porém, quando se menciona esquizofrenia, transtornos de personalidade, ou perturbações obsessivo-compulsivo, que põem as pessoas à margem da sociedade devido aos seus comportamentos fora da norma, muito rapidamente estas são apelidadas de loucas, ou difíceis. A chave está em humanizar.
Nos vários capítulos do seu livro, Daynes conta-nos histórias que a marcaram. Há muitos casos em que a doença mental teve influência direta nos crimes cometidos pela pessoa, e tal foi o caso de “Michael” (nome fictício), que matara duas pessoas, e admitiu os homicídios. Michael alegava que ouvia vozes, jihadistas, que lhe diziam que tinha de matar alguém, senão eles localizavam-no através do chip que lhe tinham posto abaixo do estômago, e matavam-no. Tinha tido uma vida normal até então, sem antecedentes criminais. Kerry foi chamada para avaliar o estado mental de Michael. Ele contou que as vozes o tinham tentado matar e que, para o evitar, entrou em negociação com os jihadistas. “Era ele ou eu, e eu escolhi-me a mim.” Diagnosticou-o com esquizofrenia, e relatou que até então não estava medicado.
A psicóloga explicou: “Ele acreditava que era um alvo para jihadistas e que estava a ser seguido por eles. Apesar de ter a absoluta consciência de que fazia algo ilegal, na sua lógica, ele estava a defender-se da ameaça. Em termos legais, a maioria das pessoas consideraria isto um estado de mente “anormal” e que a experiência era suficientemente intensa e perturbadora para comprometer tanto o seu raciocínio como a sua vontade.”
Cada pessoa, com as condições que tem, pode fazer escolhas; mas uns têm mais escolhas que outros, e estão mais ou menos condicionados pela vida que levam. As pessoas que sofrem de esquizofrenia raramente são violentas, embora os delírios de perseguição possam fortemente potenciar esse risco.
Afinal, Michael era louco, ou mau? Caracterizá-lo por apenas uma destas duas categorias seria injusto. Na verdade, o homicida teve uma reação às vozes que ouvia. No entanto, duas pessoas perderam a vida como resultado. São histórias difíceis de digerir, e é normal, após ter o contexto, ter sentimentos contraditórios ou até de compaixão pelo homicida e lamentar as mortes.
Os humanos são seres complexos e cheios de ambiguidades. Louco ou mau, continuam a perguntar? Talvez os dois, e muitos outros mais. “Cada pessoa é diferente e complexa. É um conjunto de fenómenos que nos leva a cometer atos desviantes”, refere.
Do outro lado do espectro, também com esquizofrenia, o matemático John Nash, vencedor de um prémio Nobel em 1994, teve a sua vida retratada no filme “Mentes Brilhantes” (2001). Neste caso em particular, o estado de delírio e alucinatório em que ficava, devido à doença, foi o que potenciou os seus momentos de maiores descobertas.
“As pessoas estão sempre a tentar passar a ideia de que quem tem uma doença mental está sempre a sofrer. Eu acho que a loucura pode ser um escape. Se as coisas não estão tão bem, podemos sempre imaginar um cenário melhor. Na minha cabeça eu era o melhor do mundo na matemática, e isso fazia-me sentir bem, apesar de não ser verdade”, partilhou o matemático numa rara aparição em público.
Lideranças criminosas?
Um dos motivos pelos quais Kerry Daynes escreveu este livro foi para que se pensasse um pouco mais sobre o partido em que se vota. Gostava que as pessoas lessem mais sobre quem está por trás do crime, e que pensem mais quando olham para os políticos.
As políticas de combate ao crime são muitas vezes defendidas por líderes mais extremistas, e a capacidade de criar empatia com quem sofre destes transtornos é essencial não para o combate, mas sim para a prevenção destes crimes.
Curiosamente, muitas vezes, na esfera política, podem observar-se perturbações, como em casos de figuras mais controversas, como Donald Trump ou Vladimir Putin, que conseguem ainda apelar a um extenso público que os apoia. A verdade é que não são criminosos, pelo menos não diretamente.
No entanto, sabemos que são pessoas que têm algum nível de transtorno, se são privilegiados ao ponto de acharem que os seus interesses pessoais e as suas buscas por poder são mais importantes do que a vida de milhões de pessoas.
Enquanto Trump incitou à violência, resultando no ataque ao Capitólio dos Estados Unidos em janeiro de 2021, Putin, um verdadeiro ditador, invade a Ucrânia sobre falsos pretextos, causando a morte de milhares de cidadãos ucranianos e russos. E perante isto surge a questão: como foram estas pessoas eleitas, e sob que premissa? Por que continuamos a votar nestas lideranças? Pois que nem tudo terá ainda uma resposta, e a mente humana é, sem dúvida, um lugar complexo mas fascinante.
Este artigo foi publicado na edição de outono da revista Líder
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