As vítimas inocentes da crueldade humana. As tragédias migratórias vividas por quem procura uma vida melhor. Os refugiados. A xenofobia e o racismo. Os despedimentos selvagens. As lideranças tóxicas. As discriminações de toda a ordem. A amargura de quem nasce em meio familiar problemático e não dispõe de meios para investir na educação nem vislumbra forma de encontrar vida digna. A pobreza herdada. O trabalhador cuja remuneração não lhe permite abandonar a pobreza. Apesar de toda a evidência, muitos de nós acreditam piamente que o mundo é justo – que recebemos o que merecemos, e que merecemos o que recebemos.
“A crença num mundo justo” é, em medida considerável, uma ilusão, ou uma falácia, amplamente estudada ao longo de dezenas de anos por investigadores das áreas da psicologia, da justiça social, e das organizações. Os resultados mostram que a crença exerce um efeito poderoso na forma como encaramos as justiças e as injustiças, as nossas e as dos outros, em múltiplos domínios da vida. A pesquisa mostra também que a crença num mundo justo é, em grande medida, imune aos factos e que apenas circunstâncias dramáticas e duradouras (e.g., desemprego de longa duração; uma guerra) conduzem ao seu desmoronamento.
A ilusão tem uma grande vantagem: convence-nos de que vale a pena investir em objetivos de longo prazo, pois o esforço será recompensado. Confere sentido aos sacrifícios do presente em prol de uma futura vida melhor. Conduz-nos a crer que, se formos boas pessoas e atuarmos com justiça e honestidade, alcançaremos os frutos das nossas virtudes. Tranquiliza-nos: os maus serão punidos e os bons serão recompensados. Mas da ilusão também podem resultar outros efeitos, alguns perversos. Se acreditamos que o mundo é justo, mas observamos graves injustiças, precisamos de remover essa dissonância da nossa mente. Uma via possível seria alterar a crença. Mas, como antes referi, ela tende a persistir perante os factos. E, como não estamos motivados para abandonar o conforto da nossa crença, procuramos atuar sobre a realidade – ou então distorcemo-la. Atuamos sobre a realidade quando lutamos contra a injustiça. Reposta a justiça, a nossa crença permanece intacta! No entanto, nem sempre esta possibilidade está nas nossas mãos. E, mesmo quando está, podemos não estar dispostos a fazer esforços ou sacrifícios. É então que as distorções da realidade e outros efeitos perversos emergem.
Um desses efeitos consiste em desvalorizar a injustiça. Eis um exemplo: a investigação sugere que as pessoas que acreditam num mundo justo subestimam as injustiças praticadas na sua organização. Assim mantêm a crença – mas nada fazem para remover a injustiça. Mais perverso é denegrir o caráter da vítima inocente da injustiça e atribuir-lhe a culpa pela mesma. Este fenómeno está amplamente investigado. Perante alguém que, objetiva e declaradamente, é vítima inocente de uma injustiça, a pessoa com uma crença arreigada num mundo justo aponta o dedo à vítima. Não surpreende, pois, o seguinte facto: em processos de seleção, candidatos que foram vítimas inocentes de um despedimento selvagem, ou saíram da organização como consequência de uma discriminação óbvia, são preteridos perante candidatos sem essa “mancha”. O fenómeno é transversal a vários domínios, levando-nos a culpar e atribuir responsabilidades a vítimas inocentes de acidentes, a refugiados, ou mesmo a vítimas de violação e assédio.
A crença num mundo justo conforta-nos. Confere mais sentido à vida. Impele-nos a fazer esforços. Estimula-nos a atuar com justiça. Mas, paradoxalmente, também nos pode impelir a discriminar vítimas inocentes e a perpetuar injustiças. Pode ainda conduzir-nos a idolatrar, entronizar e atribuir méritos a pessoas que fruíram da pura sorte ou de benefícios pelos quais nada fizeram. Quando celebrizamos os bafejados pela “lotaria ovariana” (expressão do multimilionário Warren Buffett) ou denegrimos as vítimas inocentes de injustiças, estamos a defender a nossa crença num mundo justo e no mérito – mas acabamos a perpetuar a injustiça e o demérito. A crença num mundo justo pode ser uma fonte de enormes injustiças. Pensemos nisso.