Nas organizações financeiras, uma quantidade considerável de gestores é promovida e remunerada com base em fatores não relacionados com competência ou resultados. São mais frequentemente homens que promovem outros homens – não necessariamente por razões sexistas, mas porque os decisores das promoções, frequentemente homens, tendem a preferir gestores “similares a eles”. Daqui resulta um sistema de compadrio que precisa de ser combatido através da concessão de oportunidades às pessoas, designadamente mulheres, para demonstrarem as suas capacidades e excelência. A autora desta tese é Grace Lordan, fundadora e diretora da Inclusion Initiative, na London School of Economics. No Financial Times, escreveu que a “chamada meritocracia confunde sucesso com privilégio”, designadamente o “privilégio da incompetência” concedido a quem integra as redes de compadrio.
Tendemos a pensar que a progressão nas organizações é ditada pelas capacidades, competências, desempenho e resultados. Todavia, o quadro mental em que operam os decisores e a própria cultura organizacional estão contaminados por preferências, estereótipos e preconceitos que se reproduzem. As denominadas “bolsas de talentos” podem ser um desses espaços reprodutores.
Alicerçadas em informação exígua e perceções mais ou menos enviesadas, essas bolsas catalogam as pessoas de modo, por vezes, simplista. Estimulam a concessão de oportunidades às pessoas que integram a lista – que assim se tornam mais autoconfiantes e fruem de condições para mostrar o apregoado mérito. Ademais, ao rotular essas pessoas como talentosas, a empresa está a classificar as outras pessoas como desprovidas de talento. Essa decisão veicula uma mensagem: os “outros” não têm capacidade para chegar à bolsa de talentos. Esta mensagem declina a autoconfiança desses “outros”. Menor autoconfiança gera menor desempenho. Resultado: o mérito não é revelado e a profecia confirma-se! Este é, porventura, o pecadilho mais comum dos programas de gestão de “talentosos”.
Não recuso a eventual importância dessas bolsas. Nem subestimo a relevância dos processos de avaliação de desempenho, e da necessidade de premiar o mérito. Desejo apenas sublinhar que a meritocracia é, por vezes, mais mito do que realidade. A real fraca mobilidade social é elucidativa. O berço em que alguém nasce determina, em medida considerável, o berço em que nascerão os seus filhos. A posição social e económica dos pais exerce um papel crucial na posição dos filhos, o que contraria a essência da meritocracia: as oportunidades devem depender das capacidades e do esforço, não da origem familiar.
A mobilidade social é o motor e um indicador-chave de um sistema meritocrático. Infelizmente, em muitos países desenvolvidos, é cada vez mais difícil ascender na escada social. Como escreveu The Economist, “é cada vez mais difícil chegar a rico se se nasce pobre”. No Reino Unido, a probabilidade de uma criança pobre vir a ser um adulto abastado é de 9%.
Nos EUA, apregoado como o país das oportunidades, essa probabilidade é de 7.5%. O “sonho americano” é, pois, um mito que ajuda a manter o status quo. Em Portugal, a mobilidade social tem aumentado, mas está longe de corresponder a uma genuína sociedade de oportunidades na qual o mérito, mais do que o berço, determina o sucesso a que cada um tem direito na vida. Um estudo publicado pela Fundação Francisco Manuel do Santos revela que a mobilidade social entre pais e filhos é menor em Portugal do que na União Europeia, embora o aumento da mobilidade tenha sido “muito maior” em Portugal do que na União Europeia, resultando numa aproximação.
No prefácio ao estudo, escreveu Pedro Pita Barros:
“A mobilidade económica e social em Portugal é tradicionalmente baixa, embora tenha aumentado de forma marcada na década de 70 do século passado. Dados os níveis de educação tradicionalmente muito baixos na população portuguesa, essa transformação não é muito surpreendente. (..). Ainda assim, a sociedade portuguesa teve sempre uma menor mobilidade económica e social entre gerações do que os seus parceiros europeus, qualquer que seja o indicador e o período temporal considerados. Há, pois, ainda um caminho a percorrer para uma sociedade mais livre, com maior igualdade de oportunidades, em que a condição dos pais não seja um fator determinante da condição dos filhos, em termos económicos e sociais.”
Convém, pois, manter espírito crítico e desenvolver consciência de que vivemos numa sociedade de meritocracia limitada. Continuar a alimentar o mito tem consequências sérias. Se a nossa crença na meritocracia não tem aderência à realidade, há riscos de cometermos dois erros. Primeiro: rotulamos negativamente pessoas que, por serem malsucedidas ou pobres, consideramos preguiçosas ou desprovidas de virtudes. Segundo: reverenciamos pessoas que são bem-sucedidas, não por via do mérito – mas devido ao berço em que nasceram ou a fatores que nada devem ao mérito. Eis, pois, uma sugestão: coloquemos sempre um sinal de interrogação no final da expressão “a meritocracia funciona”.