Além de demagogo e profeta perverso, Hitler chegou a ser coroado com uma aura sobrenatural. Em 1934, dois observadores ingleses estiveram presentes num comício realizado em Berlim. Ficaram sentados, no estádio, um pouco atrás do Führer. E aí tiveram oportunidade de observar como o ditador cativava a multidão. Hitler tinha uma voz que oscilava entre a calma e a portentosa estridência. Revelava, por vezes, uma indignidade histérica. Acreditava que o discurso era mais poderoso do que a escrita. Escreveu, em Mein Kampf, que “o poder que pôs em marcha as grandes religiões e avalanches políticas da História foi, desde sempre, o poder mágico da palavra falada”. Hitler entendia que as paixões políticas, que tanto queria inflamar, eram mais despertadas pelo efeito incandescente da retórica lançada às massas do que por qualquer outra força.
Os dois observadores ingleses tiveram a oportunidade de confirmar esse poder mágico. Eis como descreveram a experiência (citada em Os Grandes Ditadores, de Richard Overy, Ed. Bertrand): “Aconteceu então uma coisa extraordinária. (…) Vimos um relâmpago azulado brotar das costas de Hitler (…) Ficamos espantados com o facto de não termos sido fulminados, nós e todos quantos estavam mesmo atrás de Hitler”. Interrogaram-se os ingleses, então, sobre se Hitler não estaria possuído pelo demónio. E notaram: “Chegámos à conclusão de que estava”.
O que depois ocorreu dá conta de quão perigosas e diabólicas são estas dinâmicas carismáticas. Mas as sociedades nem sempre aprendem. Temos assistido, por todo o lado, a retóricas discursivas flamejantes proferidas por líderes proféticos e messiânicos que se apresentam como escolhidos por um Deus do ódio e corporizam projetos alegadamente regeneradores e capazes de resgatar o bem contra o mal. A chama do discurso oculta o lado demoníaco das promessas – mas atrai uns poucos que, com o decurso do tempo, atraem outros, num ciclo vicioso que resulta numa multidão que transforma o ódio em virtude.
Tendemos a pensar que a História tem um percurso linear e que as perversidades do passado não se repetem num presente mais civilizado. Mas, se atendermos ao percurso histórico mais longo, compreenderemos que há avanços e recuos. Não devemos, pois, tomar como adquiridas as conquistas da liberdade e da vida democrática. Convém que nos mantenhamos atentos, pois continuamos a observar a emergência de líderes que projetam relâmpagos (designadamente quando as televisões estão por perto!). Se não nos protegermos, podemos acabar por arder nas labaredas carismáticas. Convém que nos consciencializemos de que a liderança carismática não é necessariamente um fenómeno positivo. E, se queremos evitar ser consumidos na labareda, convém que prestemos atenção ao pendor ético e humanista das propostas – mais do que, simplesmente, à retórica flamejante.
Por Arménio Rego, LEAD.Lab, Católica Porto Business School