Desde que a organização social, o desenvolvimento cognitivo e a adaptação fisiológica dos grupos de hominídeos os (nos) conduziu à criação consciente, e planificada, de realidades não-naturais, que desequilibrámos os ecossistemas das zonas que fomos povoando.
Este desequilíbrio criou novos equilíbrios embora, por vezes, em vertigem suicidária; do mesmo modo, cada etapa desse processo provocou novas adaptações quer sociais, quer psicológicas, muitas vezes vividas em tensão e ruptura. A verdade é que, depois da revolução neolítica ter coberto o mundo (excepto zonas muito isoladas do planeta onde escassos grupos se mantiveram caçadores-recolectores), nenhuma das sucessivas etapas históricas recenseadas contribuiu para repor ou recuperar qualquer estado ideal ou edénico da nossa relação com a Natureza – pelo contrário, todas essas etapas nos foram afastando mais e mais da nossa inicial dependência dos ciclos naturais; o processo histórico caracteriza-se exactamente por esse afastamento e o fenómeno foi contínuo e global.
Através da produção simbólica, da religião e da arte, a Humanidade foi sempre garantindo pontos de contacto com os ciclos naturais e circulares da Natureza. Mas no Ocidente (europeu e norte-americano), a pressão das transformações técnicas, sociais, económicas, políticas e ideológicas conduziu-nos (implicitamente desde o pensamento grego, claramente desde as revoluções científica e industrial dos séc. XVII e XVIII), a um ponto de não retorno em que nos podemos imaginar independentes de todos os constrangimentos que não fossem os da nossa vontade e os da nossa potência e capacidade transformadora.
O processo de romper com os ciclos naturais – entendendo a História como uma linha ascensional, usando a Natureza como um território (ou reserva de riquezas) submetido ao poder de tecnologias sempre mais poderosas e eficazes e interpretável através de leis sempre mais rigorosas e abrangentes, figurando a nossa mente como sujeito heroicizado deste processo e usando o nosso corpo como um território (também ele) de intervenção prioritária (ou seja, libertando-o progressivamente das leis da natureza, nomeadamente das inexoráveis leis da vida e da morte) – , conduziu-nos ao lugar/ ao tempo em que/ onde estamos hoje: uma Humanidade desequilibrada na sua relação com a Natureza, nas relações internas (sociais, económicas, políticas,…) dos seus elementos (individuais e colectivos).
Não importa lamentar passados, que serão sempre idealizados através de construções ficcionais, mas perceber os desafios que, no presente, o peso desse passado coloca ao futuro – de que modo as urgências climáticas e a vastidão das suas consequências, de que modo as tensões (sociais e económicas, educacionais e culturais, tecnológicas e científicas, raciais e de género, ideológicas, políticas e militares …) interiores a cada uma das peças de que se constitui o puzzle (e entre todo o conjunto) mundial podem ser harmonizadas/ reparadas/ espoletadas mantendo a mobilidade e fluidez, capacidade de inovação e invenção de relações que garantiram e que constituem a matriz do próprio processo histórico, desde a hominização aos dias de hoje. Em que medida a sociedade capitalista dominante actual (da informação, da digitalização, da realidade virtual e da realidade aumentada…) pode agravar ou resolver os desafios que se nos colocam?
O processo histórico não tem fim (apenas se encararmos o fim da própria Humanidade!) nem tem fins (nenhum projecto teleológico teve ou pode realmente vir a ser levado a termo); mas esse processo pode ser conduzido, pelos seus agentes activos, para vias de mitigação e revisão de certos caminhos que se vêm revelando como causa dos graves desastres já visíveis, como dos mais graves ainda, já anunciados: a desregulação climática, a crise migratória, a precariedade dos empregos, as tensões sociais e militares, os recuos das democracias e da segurança dos seus cidadãos e das suas liberdades, o crescente domínio das gigantes tecnológicas sobre o quotidiano global, o modo como, juntamente com outros intervenientes como, por exemplo, as indústrias extrativas ou as farmacêuticas, se sobrepõem aos governos no controlo da vida política a partir dos controlo dos mercados financeiros.
A maioria dos organismos internacionais parece bloqueada na sua possibilidade de conduzir de modo eficaz (rápido e em consenso universal) as mudanças que nos proporcionariam menos emissões poluentes, menos fúria extrativa, métodos menos agressivos de obter e consumir alimentos, melhor controlo da blogesfera e da manipulação a que ela sujeita os seus utilizadores. Parece não haver solução senão apostar em intervenções transformadoras de amplitude mais fragmentária ou parcial: alguns governos nacionais, alguns poderes regionais, mesmo de algumas empresas conscientes de que as mudanças de atitude lhes serão lucrativamente benéficas ou, finalmente, apoiar e contar com o poder e a vontade esclarecida (pela intervenção da educação e dos órgãos de informação) de cidadãos individuais ou organizados em colectivos informais que, por vezes, julgam necessário o recurso a acções violentas fazer ouvir a sua voz. Tudo isto é certamente muito pouco e muito disperso no espaço concentrado dos países “do Norte”, os mais ricos, os mais poluidores e, por isso mesmo, aqueles onde faz mais sentido e é mais necessário e mais possível alterar agora a agenda, dois séculos depois de começarem a sua vertiginosa e suicidária corrida. Algumas das alternativas propostas (no campo da produção de energia a partir de fontes não-fósseis) não são, porém, isentas de contradições e é necessário discuti-las – um único exemplo: o que significam, em termos de violência, as louvadas baterias dos veículos eléctricos na realidade dos países pobres que nos fornecem o minério?!
Entretanto, a fuga para a frente não pára e é através do espectro vastíssimo das designadas novas tecnologias e do fascínio de consumo de serviços cada vez mais sofisticados ou da eliminação, em todos os contactos da nossa vida (do nosso corpo), do esforço que o real implica que essa fuga se dá: na vida on line (das compras dos alimentos à compra dos livros, da substituição dos livros físicos por livros descarregados num tablet, da moeda física por NFT, da informação, obtida através de algoritmos que nos dá aquilo de que gostamos, sem nos proporcionar contradição, das idas ao cinema trocadas por filmes escolhidos em catálogo e vistos doméstico, das dificuldades, desencontros, equívocos e excitações proporcionadas pelos encontros amorosos aos encontros por medida, programados no Tinder ou outras plataforma idêntica que nos defenda quer de assédios indesejados quer de acusações de assédio), tudo nos conduz a uma crescente associalização e isolamento. Ao mesmo tempo, as gigantescas instalações onde toda esta informação se aloja e os satélites necessários para a difundir, aumentam exponencialmente o consumo de energia e o lixo espacial; ao mesmo tempo, uma perigosa deriva transhumanista prepara-se para oferecer, através dos avanços da engenharia biónica e ao que será sempre um estreito grupo de privilegiados, um corpo sem doença e sem morte.
As bolsas de resistência dominantes a esta complexa situação não se fazem geralmente valer pela positiva; são, muitas vezes, reacções radicais entendidas como guerra ou choque de civilizações e terrorismo; são, outras vezes, guiadas pela urgência da vontade juvenil e pelo desespero que as anima. Face a estes cenários pouco animadores
gosto de pensar que será do lado dos criadores (dos artistas e escritores, dos pensadores ou dos cientistas) que poderão nascer nunca as soluções, mas os instrumentos de reflexão que hão-de permitir aos cidadãos e aos decisores encontrar caminhos que permitam manter o funcionamento da Humanidade como elemento da Natureza no vasto território do real e do simbólico onde ela se definiu e foi gerada
Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico
Este artigo foi publicado na edição de inverno da revista Líder
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